22 fevereiro 2021

Antonio di Benedetto

Antonio di Benedetto
 

"Vengo de atrás, tengo ayer, no sé si tendré mañana".

Hoje tive contato com mais um formidável escritor argentino, do qual sabia apenas o nome: Antonio di Benedetto. Foi maravilhoso, emocionante, vê-lo descrever os rumos de sua vida, desde a tenra infância em Mendoza, e doloroso conhecer seus últimos anos, detido, torturado e exilado pela ditadura militar. Eu o encontrei casualmente ao zapear o Youtube, no programa A Fondo, produzido nos anos 1970 pela TVE e conduzido pelo excelente jornalista Joaquin Soler Serrano. 

Tomava meu café da manhã e, comme d’habitude, buscava alguma nova narrativa de Jorge Chacho Marzetti dos contos de Cortázar ou Borges, quando me surgiu na telinha a entrevista com Benedetto. Foi um grande prazer. Depois passei a tarde assistindo outros programas relacionados a sua vida e obra, produzidos em sua maioria pelo Canal Encuentro.

Pude descobrir a força, beleza e originalidade da sua ficção, respeitada por tantos quantos surgiram em depoimentos. Conferi um longa-metragem, Aballay, el hombre sin miedo, de Fernando Spiner, baseado em um conto homônimo de Benedetto, e uma entrevista da Lucrécia Martel sobre sua adaptação para o cinema do romance Zama. Na verdade, me envolvi com as ricas análises de sua obra, com o grande respeito dos amigos e de outros escritores, que reconhecem a qualidade da literatura de Benedetto. 

Como jornalista, os elogios foram mais pelas qualidades em conduzir o jornal mendocino Andes, o que lhe valeu a violência sofrida nos 17 meses de cárcere. Graças a uma ampla campanha internacional, conseguiu a liberdade e o exílio na Espanha, onde viveu por oito anos. Retornou ao seu país no início da redemocratização, passando em Buenos Aires seus últimos dois anos.

(atualizado em 23.02.2021)



17 fevereiro 2021

Poesia 05


Ladenburg, 1989

 

Paixão

 

o que haverá de mais belo

         do que dois olhos candentes

         te mirando,

 

e os cabelos castanhos, longos

         prontos para espalharem-se

         sobre ti?

 

                                               (1988)




16 fevereiro 2021

Continuidade dos martírios

 

Se preciso for, organizemo-nos.

"Pobre de America Latina, los pillos y los vivos siempre juntos"

(José Abelardo Ramos)


Tudo anda assim, muito estranho e chato. Seja o futebol, que não parou e cujas análises das mesas-redondas são verdadeiros exercícios de estatística, a romper com a paciência do espectador; seja a política, com o absoluto distanciamento das análises essenciais; seja a presença constante desse capitão e seu desgoverno, que desgovernando coloca-se em plena campanha para as próximas eleições. Há um martírio que plana sobre as cabeças das gentes, expandindo uma percepção de desânimo que sufoca e impede uma esperança cívica. As vacinas surgem a conta-gotas, muito a contragosto desse desgoverno, competente apenas para disseminar a tragédia de cada dia, o imobilismo e a agressividade espúria de sua face visível. 

Uma tristeza absoluta. Uma desesperança construída pedra por pedra, canalhice por canalhice. Um punhado de gente tosca guindada ao ministério, aos postos de administração federal, incluindo o corpo militar, que com esmero realiza a destruição do frágil Estado do bem-estar social. Perdemos aos poucos as funções e os valores públicos da saúde, da educação, da cultura, perdemos o controle sobre a Amazônia e o Pantanal, perdemos a vivacidade do povo brasileiro, que se transforma em uma maçaroca que se extenua competindo no mercado, nas atividades mais abjetas como realizar serviços em tempo integral, sem mais proteção trabalhista. Surgem os modernos empreendedores, que se esfalfam para sobreviver.

Estava a organizar meus diários de anos passados, acrescentando ao final os apontamentos diários das agendas utilizadas. Foram os anos de 2018 e 2019, pois 2020 não precisou de agenda. Anos intensos, de congressos, artigos, cafés e jantares com amigos, uma vida afetiva intensa, organização e produção de textos enviados para concursos, para meus editores... Um tempo de convívio urbano, ainda que sob o horror dos caminhos políticos, que penetraram as frestas e como ervas daninhas, foram destroçando a vida política. 

A grande orquestração destrutiva veio como ordem das corporações, dos departamentos de justiça do exterior, com a finalidade de conceber a terra arrasada, o regresso à submissão alienada. Em 2018 iniciei minha transferência da vida ativa para uma espécie de aposentadoria compulsória, e nesse processo, vi as disciplinas em que atuava, Sociologia, Antropologia, Teorias Sociais, perderem espaço na educação, ou serem completamente alijadas. O empobrecimento do pensamento crítico já era sentido antes, quando em minhas visitas à outrora grandiosa livraria Cultura encontrava, nas estantes de Relações Internacionais, História, Economia, obras de temas como Gestão empresarial, autoajuda corporativa, investimentos financeiros, de marketing, merchandising e por aí afora. Desapareciam as bibliografias fundantes do pensamento social e político, para dar lugar a trabalhos insossos e com prazo de vencimento.

Só a expectativa do fim da pandemia e o processo eleitoral do próximo ano podem colocar de pé alguma esperança para o restabelecimento a energia da sociedade a mobilizar-se com dignidade e respeito a si mesma. Será uma luta insana. 

...

Em tempo: o título desta postagem é uma triste referência ao belíssimo conto de Julio Cortázar, Continuidade dos parques. A relação para por aí. No caso presente, lamentavelmente, não foi possível retomar o sabor da literatura, não há parque algum, não há desfrute que possa nos redimir.   


(atualizado em 18.02.2021)



13 fevereiro 2021

A hora e a vez da burrice

Buenos Aires, 1989

(...) Essas cicatrizes constituem deformações. Elas podem criar caracteres, duros e capazes, podem tornar as pessoas burras – no sentido de uma manifestação de deficiência, da cegueira e da impotência, quando ficam apenas estagnadas, no sentido da maldade, da teimosia e do fanatismo, quando desenvolvem um câncer em seu interior. (...) 

Adorno e Horkheimer, Sob a gênese da burrice, in: Dialética do Esclarecimento, 1947.


Há um cansaço que se espraia pelas mentes, um desgaste que alcança nossa forma de refletir. Digo nossa porque considero as pessoas de minha geração e mesmo os jovens que aprenderam e apreenderam o mundo com base em modelos de análise civilizatórios. A desventura Trump foi um episódio político nefasto, do qual o mundo levará muitos anos para se recuperar, se isso for possível. Com ele remontaram de maneira distinta, porém igualmente vigorosa, o desprezo consubstanciado em ódio racial, o individualismo que formatou a indiferença social, a arrogância formulada em inúmeros matizes, dentre eles, em presunção anticientífica. 

Na esteira sobrevieram pequenos seguidores, sem o mesmo poder econômico e sem a mesma aura imperial, para expandir formas de hipocrisia política de decisões e atitudes inconsequentes. Responsáveis pela reprodução de hordas fanatizadas, que finalmente encontravam maneiras de sair de seus casulos para provocar, sem o menor senso. Há uma série de figuras tidas como ultradireitistas espalhadas pelo mundo, Orbán, Salvini, Duterte, e por aqui, o capitão que desgoverna o país. A impressão é que todo o esforço para compreender os limites da desventura política, tal como ocorreu no mundo nos anos 1930, com suas trágicas consequências, desaparece e dá lugar às vagas sem controle de delinquência, que num passe de mágica liberta recalcados e sociopatas para agir, tomar o proscênio do processo histórico.

Nada parece ser mais difícil do que encontrar estratégias que interrompa a destruição desse populismo caricato cujas lideranças, com suas bazófias grotescas, engendram movimentos espectrais que multiplicam alucinações. Triste ver um tipo de comando político robustecendo espectros que, sem um projeto comum, alimentam-se das mais extremadas fantasias. O recente ataque ao Capitólio estadunidense é a forma mais acabada dessa realidade. Ao mesmo tempo, tornou-se perigosa utopia se pensar em restabelecer o Estado com suas funções plenas de ator para promover investimentos, em nome de políticas públicas que consolidem o desenvolvimento social.

De modo mais objetivo, um Estado que tenha competência e protagonismo para delinear um plano de saúde pública que combata de modo eficaz a atual pandemia. Ou de elaborar um programa de renda mínima, que impeça a necropolítica e consequentemente, a demonização do pobre. Ou que estabeleça leis que criminalizem de vez a manifestação do preconceito, seja ela o matiz que for. Isso não é pedir demais. Ao contrário, me parecem bases razoáveis para um convívio social minimamente amparado na tolerância ao outro, no respeito às diferenças culturais, religiosas, raciais, de gênero.

Chegamos ao ponto em que o simples fato de se exprimir o conhecimento científico virou chacota, algo definitivamente dispensável em um mundo regido pela alucinação, para que a burrice como método - e como mérito - possa de maneira resignada expandir os sistemas produtivos ao ponto de motivarem o indivíduo a um mísero ganho monetário, como forma de um empreendedorismo cínico, de parcas proporções.



08 fevereiro 2021

Poesia 10

 
Montevidéu, 1989



O espaço do fantoche

(ou, A propósito de Dante)

 

Ei-lo, o inanimado.

Agoniza sob as torturas nas catacumbas

gélidas e sorrateiras da mente obtusa...

Arrasta-se pesarosamente

em sua dança constrita,

os grilhões ardentes/candentes

animado em sua própria avareza...

Lamuria-se aos bocados

com a aflição sofrida no palco sombrio,

o espírito corroído pela inépcia

o amor deglutido na vã expectativa...

Flutua como todos nós,

mas a revolta não será sua redenção.

É o protótipo pálido da natureza humana

o potencial de mobilização

marcado pelos engonços do títere...

E a pesada mortalha

que sufoca perante os olhos sensíveis,

transforma-se no agradável aconchego

em seu mórbido caminho ao ocaso.

 

 

                                                            (Julho/83)




03 fevereiro 2021

O regabofe dos incautos

 

O desejo de tomar o primeiro navio

Soube-se pelas imagens fartamente distribuídas que ontem à noite rolou a festança comemorativa da eleição dos presidentes da câmara e do senado, respectivamente, Artur Lira (PP de Alagoas) e Rodrigo Pacheco (DEM de Minas). A indicação dos partidos, ao lado dos nomes eleitos, é um mero e insignificante detalhe, tendo em vista a função política que ambos representarão a partir de agora, meras correias de transmissão das vontades do executivo, que por sua vez se acerta cada vez mais com os desejos do mercado.

Quanto às vontades do executivo, parece um tanto lógico que ocorra, em virtude dos altos investimentos em forma de emendas parlamentares, a serem liberadas aos nobres congressistas aliados. De certo modo, uma festança dentro da lei, já que a distribuição de tais verbas está prevista por lei orçamentária. O problema aqui foi os bônus especiais para aqueles de comportamento mais fiel. Talvez a canalhice maior fique por conta não da mão que entrega esses recursos, mas das mãos que gulosamente recebem, mesmo que para isso tenham de renegar o partido a que pertençam e suas orientações programáticas, por mais vagas que sejam. 

Mas a festança ocorreu, e de tal modo que o vencedor na câmara teve o dobro dos votos do segundo colocado, que há um mês, por ser um lídimo representante de um consórcio denominado Centrão e ser ungido pelo então presidente da casa, Rodrigo Maia, era o grande favorito. No senado, as coisas correram mais à sorrelfa, e o vencedor venceu, segundo alguns meios de comunicação, de modo mais diplomático. Sim, os meios de comunicação tradicionais cobriram com zelo e discrição o jogo de faz de conta, mais atentos "ao cenário político e aos desdobramentos futuros", descartando a festança das emendas.

Da festa oficial e tolerada dos corredores do Congresso para o regabofe da noite, nos salões apropriados para comes e bebes, música ao vivo e muita animação de uma substanciosa parcela de parlamentares. Dos desvios oficiais e, digamos, previsíveis, para os exageros imprevisíveis, com direito a presenças estranhas, com comportamentos estranhos em comemorações estranhas. Alguns celulares registraram a transformação, de parlamentares oportunistas a infames indecorosos, que assumiram seus impulsos de boçais sem qualquer escrúpulo.

Penso nos momentos desse Congresso que, em diversos momentos de nossa vida cívica, representou ou tentou representar de modo apropriado os anseios populares, para os quais foi eleito. Posso recordar a votação do impedimento de Collor, em 1992, ou um pouco antes, das Diretas-já, em 1984, derrotadas por um punhado de deputados governistas. E talvez haja um momento que sobressaia por seu poderoso significado simbólico, com consequências trágicas para nosso país: a votação contra a concessão da licença para se punir o deputado Marcio Moreira Alves, em dezembro de 1968. 

A pressão, por longos três meses, foi das forças armadas, foi do executivo comandado por militares, e não houve o que rompesse a soberania da Câmara dos Deputados. Não houve ordem que abrandasse o equilíbrio das análises jornalísticas ou que fizesse a outra instância do poder, o Supremo, afrouxar as rédeas da Constituição. Mesmo sob a ameaça das sombras, votou-se da única maneira que se podia votar, pelo estado de direito e em defesa da instituição parlamentar. Marcito foi salvo e no dia seguinte, mergulhamos nas trevas do AI-5.