29 março 2019

Não-projetos


Cabeza y mano IX, Guayasamin


Por volta de 1990 um certo apresentador de TV migrava de uma pequena emissora para outra mais possante, contratado por uma pequena fortuna. Na pequena emissora tratava de assuntos policiais, o cenário se restringia a uma mesa, jornais do dia e um bastão, que de quando em quando era brandido de modo selvagem quando a notícia era calamitosa, um estupro, uma omissão do poder público, um assalto espetaculoso, assuntos que acomodassem um apelo popular e permitisse a plena especulação sob a moral hipócrita do conservadorismo. 

Chamava a atenção a ruptura dos limites comunicacionais, sem qualquer consideração com a ética profissional; tudo era dito sem restrições, o bandido bom era o bandido morto, a favela era o espaço da violência, a lei da polícia militar era a ordem a prevalecer. O apresentador exaltado gostava de dar com o bastão na mesa sugerindo um acerto de contas pessoal, de acordo com suas convicções e interpretações do código penal, e isso extasiava uma parcela crescente de expectadores.

Nossa frágil formação acerca do Estado democrático de direito sempre abriu brechas para os heróis de ocasião, sobretudo os midiáticos, aqueles de discurso atrativo que oferecem soluções mágicas, pautadas na interpretação ostensiva de uma lei inexistente, que prega a pena de morte ou a punição do menor infrator com menos de 18 anos. Esse tipo de discurso aboliu a resolução gradual, programada, amparadas em políticas públicas. Isso não vende, não é oportuno para o circo de horrores alimentado pela imediatez da audiência, pelos interesses políticos que ligam os proprietários dos meios de comunicação com os governantes de ocasião. Significa dizer, o espetáculo torna-se uma eletrizante terra de ninguém, cujos ditames morais se espraiam pela sociedade. 

Assim, retornando ao certo apresentador de TV, o projeto de seu programa era simplesmente um não-projeto e nisso foi perversamente "revolucionário". Ao ser entrevistado sobre seu novo programa, ele simplesmente resumiu que seria "qualquer coisa", conceito que lhe proporcionaria sucesso e estabilidade na TV pelos trinta anos seguintes, tornando-se uma espécie de referência em termos de programa de auditório. Mal sabia que esse "qualquer coisa" ganharia estatura de valor, legitimando o vazio neoliberal que se instalava no país ao estimular programações imbecilizantes, onde o conjunto de entretenimento e de informações cumpriam sua função de amenidades descartáveis.     

O conjunto de amenidades descartáveis, ou qualquer coisa, ou não-projetos, extrapolou a grade das rádios e TVs para ganhar vida na realidade cotidiana, nas empresas, nas escolas, na política. Multiplicaram-se os apresentadores alucinados e hoje são entusiastas dessa apoliticismo que nos aflige, e claro, por um punhado de dólares. 


Se temos hoje uma governança que se manifesta nos limites do twitter, sem capacidade de sustentar um projeto de governo pela limitada visão de mundo, isso apenas revela que nossa democracia está enferma, contaminada pela impossibilidade crítica coletiva de discernir o que é imprescindível para nosso desenvolvimento social daquilo que seja absolutamente sem qualidade.  



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