Cabeza y mano IX, Guayasamin
Por volta de 1990 um certo apresentador de TV migrava de
uma pequena emissora para outra mais possante, contratado por uma pequena fortuna. Na
pequena emissora tratava de assuntos policiais, o cenário se restringia a uma
mesa, jornais do dia e um bastão, que de quando em quando era brandido de modo selvagem quando a
notícia era calamitosa, um estupro, uma omissão do poder público, um assalto
espetaculoso, assuntos que acomodassem um apelo popular e permitisse a plena
especulação sob a moral hipócrita do conservadorismo.
Chamava a atenção a ruptura dos limites comunicacionais, sem qualquer consideração com a ética profissional; tudo era dito sem restrições, o bandido bom era o bandido morto, a favela era o
espaço da violência, a lei da polícia militar era a ordem a prevalecer. O
apresentador exaltado gostava de dar com o bastão na mesa sugerindo um acerto
de contas pessoal, de acordo com suas convicções e interpretações do código
penal, e isso extasiava uma parcela crescente de expectadores.
Nossa frágil formação acerca do Estado democrático de
direito sempre abriu brechas para os heróis de ocasião, sobretudo os
midiáticos, aqueles de discurso atrativo que oferecem soluções mágicas,
pautadas na interpretação ostensiva de uma lei inexistente, que prega a pena de
morte ou a punição do menor infrator com menos de 18 anos. Esse tipo de
discurso aboliu a resolução gradual, programada, amparadas em políticas
públicas. Isso não vende, não é oportuno para o circo de horrores alimentado
pela imediatez da audiência, pelos interesses políticos que ligam os
proprietários dos meios de comunicação com os governantes de ocasião. Significa
dizer, o espetáculo torna-se uma eletrizante terra de ninguém, cujos ditames
morais se espraiam pela sociedade.
Assim, retornando ao certo apresentador de TV, o projeto
de seu programa era simplesmente um não-projeto e nisso foi perversamente
"revolucionário". Ao ser entrevistado sobre seu novo programa, ele
simplesmente resumiu que seria "qualquer coisa", conceito que lhe
proporcionaria sucesso e estabilidade na TV pelos trinta anos seguintes,
tornando-se uma espécie de referência em termos de programa de auditório. Mal
sabia que esse "qualquer coisa" ganharia estatura de valor,
legitimando o vazio neoliberal que se instalava no país ao estimular
programações imbecilizantes, onde o conjunto de entretenimento e de informações
cumpriam sua função de amenidades descartáveis.
O conjunto de amenidades descartáveis, ou qualquer coisa, ou não-projetos, extrapolou a grade das rádios e TVs para ganhar vida na realidade cotidiana, nas empresas, nas escolas, na política. Multiplicaram-se os apresentadores alucinados e hoje são entusiastas dessa apoliticismo que nos aflige, e claro, por um punhado de dólares.
Se temos hoje uma governança que se manifesta nos limites do twitter, sem capacidade de sustentar um projeto de governo pela limitada visão de mundo, isso apenas revela que nossa democracia está enferma, contaminada pela impossibilidade crítica coletiva de discernir o que é imprescindível para nosso desenvolvimento social daquilo que seja absolutamente sem qualidade.
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