Carybé, Cangaceiro, nanquim sobre cartão
A cada
dia que passa sente-se no ar a brutalização dos fatos, comandados, mas não
controlados, pelos agentes do golpe institucional. Só para os desavisados ou de
mau-caráter o roteiro sustentado por uma narrativa infame não é a reprodução de
um estado de exceção, daqueles bem torpes, que surgiram em tempos passados em
nossa América Latina.
Mas
também está claro que, à medida que o roteiro é cumprido, o formato do golpe
foi atualizado para as circunstâncias contemporâneas. O mais importante é que o
conteúdo é o mesmo, provocação de órgãos de segurança, intolerância disseminada
e não coibida, cerceamento das manifestações de esquerda, sensação asfixiante
para aqueles que minimamente analisam o desenrolar dos fatos, e não se limitam
às programações entorpecentes veiculadas nos meios de comunicação hegemônicos.
Este fim
de semana foi rico em fortes impressões: na sexta-feira a resistência de Lula
em seu Reduto lendário, o sindicato dos metalúrgicos do ABC, no sábado o
discurso histórico, a saída, carregado nos braços do povo, e o processo de sua
detenção; no domingo, uma final no futebol envolvendo duas das principais
torcidas do Estado, e o título do mais popular, o Corinthians, onde
praticamente não se viu comemoração pela cidade. Seria um sinal de que a
população acusava caladamente as sucessivas surpresas golpistas em pleno
desenvolvimento?
Já não se
trata redigir sobre comentários insensatos desse ou daquele posicionamento de
um comentarista da mídia ou de um empresário da Fiesp. Essa etapa já foi
superada e agora estamos em plena arregimentação das forças brutas, vale dizer,
o escárnio de generais, a chantagem midiática, para a complementação de um ato
obtuso, do qual a população ainda não consegue vislumbrar com nitidez. A
desfaçatez foi superada, estamos no estágio da implementação do obsceno, com a
efetivação do desmonte de uma nação.
Retomamos
o fio da meada: os agentes do golpe institucional não se incomodam mais em ser
ou não desmascarados, apenas atuam em função do roteiro programado há mais de
dois anos, para a reafirmação do poder das corporações financeiras. O Leviatã
programado é mais cínico que o proposto por Hobbes, pois nele a figura do
soberano não se expressa por sua personalidade, mas por seus interesses,
fragmentados entre um oligopólio de dominadores. Do congresso, cenário do
primeiro ato, passamos para o judiciário no segundo ato.
O
terceiro ato se dará todo nas ruas e seus personagens não serão apenas ouvidos
vagamente, como nos dois atos anteriores, mas serão protagonistas da ação. No
domingo uma gigantesca Ocupação marchou em São Bernardo do Campo, sob as
bandeiras do MTST, após a conquista de suas reivindicações por terra.
Caminhavam pelas ruas bradando palavras de ordem e na frente, empunhavam uma
enorme faixa, "Lula Livre". Em menor intensidade, foram manifestações
vistas nos grandes estádios de futebol, nas finais dos estaduais.
Esse não
é o terceiro ato em si, mas apenas uma preparação, em que o coro anuncia o
desenrolar da tragédia. O governo obscuro de Temer já não interessa para
ninguém, agora também para os golpistas. Será mantido como forma de se ganhar
tempo nos bastidores, ondem procuram soluções para o desfecho desse lamentável
drama, iniciado por declarações irresponsáveis, de senadores como Aécio Neves
pregando a ruptura institucional em pleno parlamento. Inconsequente, se
escafedeu, provavelmente escondido em algum reduto obscuro.
Sinto
nas pessoas uma discrição, que dependendo do posicionamento assumido em face do
processo histórico, pode significar omissão ou desconsolo. Omissão para os que
desejam se afastar de suas escolhas, desconsolo junto àqueles que fraquejam
pela escolha de mais uma derrota. Ora, escolher o caminho que leva à derrota
nada significa, até porque o processo histórico prossegue, e com ele, a luta
que nos glorifica. Há também os que abraçam o mórbido gracejo, ironizando os
fatos e desincompatibilizando-se da responsabilidade política.
Vivemos um tempo de miserabilidade (não de desconsolo), o Estado democrático de direito sob ataque de grupos facínoras, que se acreditam acima do bem e do mal. Já havíamos visto isso na atuação dos grupelhos direitistas no pós-golpe de 1964, por aqui, no pré-golpe de 1973 no Chile, no pré-golpe de 1976 na Argentina e Uruguai. Eles agem impunes, até que o estado de exceção se estabeleça e abarque seus mórbidos impulsos. Desde 2013 panelinhas como o Vem pra Rua ou o MBL preparam o terreno da infâmia e sem fazer política, semeiam o ódio.
Lula seguirá preso por um bom tempo, até que as pressões internas e externas modifiquem a vilania de um judiciário impotente em seu labirinto. De nenhuma parte dos meios corporativos - e ainda hegemônicos - virá o contraponto para a compreensão dos fatos, pois todas as vozes autorizadas que representam alguma forma de oposição à essa marcha da insanidade foram excluídas da pauta. Eles abandonaram há tempos sua função de 'meios', para se transformarem em instrumentos ideológicos do golpe (necessário retornar a Althusser!), manipuláveis pelos interesses do capital financeiro.
O
quarto ato, eleições ou golpe consumado? Seguimos na luta pela retomada da
legalidade, tal como os bravos fizeram em 1961, porque o espírito dessa
resistência há de persistir. E gostaria de lembrar o jornalista Chico Pinheiro,
que citou a composição "Pesadelo",
de Maurício Tapajós e Paulo Sérgio Pinheiro, "Quando o muro separa uma
ponte une/ Se a vingança encara o remorso pune/ Você vem me agarra, alguém vem
me solta/ Você vai na marra, ela um dia volta (...)"
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