30 abril 2018

Sobre o mundo paralelo



Oswaldo Guayasamin, Los Culpables (1963)

Há algum tempo ensaiava escrever o que se me anunciava como um exagero, é verdade, mas que encontrava consistência nos atos e principalmente nos silêncios de nossa mídia corporativa patronal, de nossos políticos e sobretudo, de nosso judiciário. Um silêncio opaco e falso, que persistia e se mantém para abrir caminho para outras intervenções, outros ruídos, empenhados em demolir a frágil estrutura que restou de nosso estado democrático de direito.

Neste sábado, um novo atentado espetaculoso, certamente não tão fatídico quanto os atentados em andamento aos nossos grupos indígenas no interior do país, mas tão pervertido e covarde quanto o ocorrido há cinquenta dias contra a deputada Marielle Franco e seu motorista Anderson Pedro Gomes, em pleno espaço urbano, ocultados pela bruma da noite, expôs o andamento do que conhecemos no pós-1964 e no pré-1968, a ação desmesurada de grupos inconsequentes de direita.

Desta vez, o acampamento nomeado Marisa Letícia, um dos locais que promovem a vigília por Lula, ainda detido nas dependências da Polícia Federal em Curitiba. O ato violento em si não proporcionou qualquer manifestação das autoridades públicas dos campos citados acima. Nenhuma discussão, nenhum comentário, como se não tivesse ocorrido, ou como se pertencesse a uma outra realidade, paralela, irreal, que não merecesse maior atenção.

É aí que trago a ideia que pretendia desenvolver. Estamos diante de um tal descalabro político, marcado por tamanha indiferença do mundo jurídico, político e midiático, que não seria estranho afirmar que vivemos em um mundo paralelo, enfiados em uma realidade pautada pelo tempo do game, onde não passamos de personagens virtuais de jogadores poderosos que nos conduzem pelo cenário tão próximo do real e ao mesmo tempo tão distinto dele.

As aventuras programadas reproduzem valores a serem assimilados. O tempo social e as escolhas são assediadas, onde nossa autonomia de ação é controlada pelo sistema de programação do software. Na verdade, como vilões da história, os personagens de esquerda com suas aparições só conseguem protelar o movimento dos jogadores, que no final das contas é chegar a lugar nenhum. Nesse sentido, prender Lula e mantê-lo sob cárcere foi um bônus especial, que prolonga indefinidamente o jogo.

Em outras palavras, para ir al grano, aí reside a vida de cada um de nós, encapsulados em um mundo de semelhança com o real, só que marcado pelo controle. E do que se trata a realidade da vida cotidiana? É onde recuperamos um punhado de nosso tempo e escolhas, com a finalidade tolerada de jogarmos, de praticarmos o jogo. Vivemos então a representação mais explícita de nossos desejos recônditos de nossos prazeres, de nossa agressividade, de nossa individualidade.

Só não temos a liberdade de atuar no pleno direito de nossa cidadania; assim, invertemos o sentido do tempo e nosso espaço, vivendo uma vida esvaziada, seja no mundo paralelo, seja na realidade da vida cotidiana. Elas se invertem no tempo e no espaço e seguem às avessas, sem necessariamente produzir significado. É como se a razão mágica da vida fosse abstraída por forças dominantes, restringindo-a a funções programadas ou previsíveis.


Tolkien ou Carpentier, cada qual a expressar o maravilhamento de suas imaginações, não seriam capazes de proporcionar uma realidade assim distorcida. O mundo bancário, com suas normatizações tacanhas, encontra a oportunidade de estabelecer sua verdade ilusória. Já não se trata de impor ideologias, mas de prevalecer um poder, um poder acovardado em meio às sombras, onde se espraia ao melhor estilo dissimulado. Um poder sem cara, que se move de modo inclemente por seus interesses.


Um poder que acima de tudo não se emociona, posto que se limita a se satisfazer. Um poder que não teme suas contradições. Um poder que não sujando as mãos, produz e reproduz seu bando de ignorantes para difundir e sustentar, como diz o jurista Eugênio Aragão, o caos comunicativo em nossa sociedade, capaz de subverter a realidade da vida cotidiana em mundo paralelo. Por essa singela razão, e mais também por não existirmos para a submissão controlada, seja esse um poder que não permanecerá.  




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