30 julho 2016

Companhia

Resultado de imagem para republicanos espanhóis

Ontem à mesa de jantar, meu pai se assemelhava a um republicano espanhol durante a guerra civil. Rosto barbado, o boné parcialmente tombado à esquerda, o blusão azul, o ar sério de quem aguarda notícias da batalha de Teruel. Bonita imagem, a placidez em meio aos renhidos combates da vida, entretido em sorver a sopa de feijão. Passei a tarde em sua companhia, antecipando a visita dos domingos. O dia frio e cinzento nos recebeu bem, se desenrolou em um convívio sereno, de boas e serenas conversas. À tarde fomos ao barbeiro, a poucas quadras de sua casa, em uma rua que percorri por anos para ir e vir do grupo escolar. 

O entorno não está muito diferente, por alguma razão praticamente não se erigiu nenhum edifício, é possível identificar parte das casinhas antigas perfiladas, esquecidas. Uma rua que preservou a estranha ausência humana, na época um tanto incômoda para uma criança solitária, com a bolsa da escola. Tomava aquele caminho logo pela manhã e retomava as cores da vida quando me aproximava do colégio, hoje destroçado pela indiferença das autoridades. Atravessar aquele trecho me remetia à desolação, ao primeiro contato com o silêncio artificial do no man's land do front de Teruel, impressões que permanecem. 

Mas retorno à visão de meu pai, o ralo cabelo branco sendo aparado pelo barbeiro negro, a conversa entre eles a girar em círculos imprecisos, marcada pela memória fragmentada dos fatos. Recordei de sua companhia quando me levou ao barbeiro logo que passei no vestibular para engenharia. Ele fez questão de estar comigo no gesto simbólico do barbeiro passar máquina zero e rapelar meu crânio. Foi este apenas um dos vários ritos de passagem em que esteve comigo.

Nestes tempos de incertezas, tem sido prazeroso desfrutar os momentos com meu pai saudável, quase nonagenário, em harmoniosa placidez consigo mesmo. As conversas fluem, em alguns momentos revelam-se espiraladas, alternadas por loopings de dispersão, em outros, em saborosa fluência, mas sempre marcadas por um tom especial de ternura. Vejo nesse progressivo enevoamento da memória o desvelar de um homem generoso, que encontrou sua maneira de curtir o tempo com atividades deleitosas: comer, dormir e apreciar o convívio com as pessoas queridas.  


(modificado, 11h de 31.07.2016; segunda modificação, 20h de 02.09.2016)


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