28 fevereiro 2016

Remígio, Paraíba


Concluo as arrumações em casa, remexendo nos arquivos de textos e imagens. Recupero uma boa quantidade de imagens em transparências, utilizadas em aulas há mais de 15 anos, e as digitalizo. Quanto ao material escrito, descartei a maior parte das matérias da mídia corporativa, não sem antes me deter na profusão de artigos e retomar o espírito do tempo. 

Deixei para o final quatro cadernos produzidos pela Folha de SP, em junho de 1994, sobre as eleições que se aproximavam. Naquele momento, Lula estava para ser superado nas pesquisas, em razão do plano real, que já estava gestado e seria lançado dali a poucos dias, favorecendo o então candidato da situação, FHC.

É possível sentir nas reportagens um arrazoado subliminar em torno da manutenção do status quo, ou seja, um discurso contemporizador, que nas entrelinhas não ameaçava as relações de poder, oferecendo uma leitura convencional da miserabilidade social brasileira e dos entraves de uma economia cambaleante. Há um caderno inteiro, oito páginas, dedicado aos abismos da questão social, desemprego, violência urbana, indigência, que se por um lado aponta as mazelas, não incorpora o desafio das mudanças estruturais, e naquele momento concorriam vertentes progressistas como Lula e Brizola. 

Restrinjo-me em discutir duas matérias que abordam temas relacionados, renda e indigência.

Em uma coluna, o jornalista Marcelo Leite aponta uma síntese com laivos acadêmicos:. Descreve sucintamente o problema, "o país tem a pior distribuição de renda do mundo e indicadores sociais incompatíveis com o nível de seu PIB per capita". Uma análise precisa, que na época estávamos cansados de saber. Tínhamos saído de um regime militar que havia concentrado a renda, e de um governo Sarney e Collor que não haviam promovido qualquer alteração significativa na distribuição de renda. 

Continuando com a coluna, vem o tópico Soluções, dividido em duas partes, Consensuais, onde começava com o mesmo mantra de sempre, "Só se distribui renda de forma sustentada com geração de empregos (...)", e mais abaixo, "(...) É preciso aumentar o salário mínimo. É preciso algum tipo de programa emergencial para minorar a miséria, como suplementação alimentar ou renda mínima(...)" (friso meu, já naquele momento, a percepção de que a desigualdade social despertava fortes inquietações nas elites).

E mais abaixo, as Soluções Controvertidas, "o PSDB dá mais ênfase à estabilização da economia do que ao crescimento como condição para a desconcentração da renda.(...)". Esse tópico e em especial este trecho, é tragicamente autoexplicativo, a preferência foi pela moeda, e as fortes privatizações que viriam nos oito anos seguintes demonstram esta opção.

Ao lado da coluna, o corpo principal da matéria, que se refere às dificuldades cotidianas da família de Geraldo Inácio Dias. Com aquele ar superior, típico do cristão remido que sai da missa e se vê impotente diante da miséria nas ruas, o jornalista elenca as possibilidades, "A família Dias está longe, não muito, daquela miséria abjeta que resulta em fotos sensacionais (...) nem mesmo o sucesso do plano real, que derrube a inflação para patamares chilenos, 1,4% ao ano, melhorará sua situação.(...)".



Uma no cravo, e outra na ferradura, "Ser presenteado com um dos 8 milhões de empregos prometidos pelo PT não melhoraria, também, necessariamente, a renda da família. Mesmo um programa de complementação de renda, nos planos da maioria dos partidos, teria dificuldade em localizar os seis (da família) entre 32 milhões de miseráveis". O cenário das especulações de um veículo corporativo, em um momento de expansão do capital, não podia favorecer a plataforma de um candidato popular e da tradição trabalhista, mesmo neste patamar de expropriação e pobreza.

O jogo do discurso promove a lenga-lenga do argumento suave, aparentemente democrático, em que os dados são jogados na mesa, e o leitor que tire suas conclusões. Enquanto isso, vazam aqui e ali os dados brutais de um Brasil profundamente desigual, "De cada cinco pessoas que trabalham no Brasil, duas ganham menos de um salário mínimo. Boa parte dessas pessoas e suas famílias estão entre os famosos 32 milhões de indigentes, que tão cedo não sairão da miséria, mesmo com crescimento econômico (...)". 

Verdade, precisariam esperar mais oito anos para começarem a ver a luz no final do túnel. Não só para alcançarem um nível de consumo mais digno, como também mais qualidade de vida, como frequência escolar, longevidade, trabalho, renda etc. O esforço do jornalista em baralhar as informações, criando um quê de impotência naturalizada diante de tanto infortúnio, se complementa com o texto "Aumento do mínimo tem efeito duvidoso". Nele, o exemplo de outro nordestino (Geraldo Dias era potiguar), o piauiense Claudino Souza, é apresentado em sua completa penúria, "(...) ganha meio salário mínimo consertando caixotes na Ceagesp. Só não dorme na rua(...) porque a prima (...) o chamou para morar em sua casa, em Osasco".

Talvez a mais desastrosa das previsões econômicas vem a seguir, "(...) O beco sem saída em que se encontra o ex-pedreiro ilustra bem o que muitos economistas estão descobrindo (...): aumentar o salário mínimo não é a forma mais eficaz de distribuir renda" (friso meu). Bem, na verdade, o salário mínimo de então era pífio, 70 dólares, e as propostas do PT e do PDT propunham, acredite, um aumento para meros 115 e 100 dólares, respectivamente, despertando imediata reação nos meios ligados ao 'mercado'. Só para comparação, embora seria necessária uma adequação monetária, o mínimo atual é de cerca de 200 dólares.

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Em outra página do mesmo caderno, o jornalista Adelson Barbosa se dirigiu para a cidade de Remígio, no agreste paraibano, para cobrir a cidade que, de acordo com suas informações, possuía o maior número de indigentes do Brasil, ou, 91,4% da população, cerca de 16.500 pessoas de um total de 18 mil. Ainda segundo a matéria, "Do total de indigentes de Remígio, 44% não tem nenhum tipo de rendimento (...) (e) os demais 66% ganham até um salário mínimo (...)" (friso meu). Ou seja, quem ganhava, ganhava até 70 dólares. 

Há alguns dados trazidos por uma professora da UFPB, Zélia Almeida, que aprofundavam os problemas do cotidiano, "os indigentes de Remígio passam fome e não conseguem comprar nem mesmo uma cesta básica para toda a família. Comem um dia e no outro não.(...)" (Friso meu). Aparentemente não se desvelava no horizonte das análises, um uma opção cabal a favor da cidadania.  

Os dados eram assustadores, e para aprofundá-los, uma imagem de seis crianças envoltas pela caatinga. A situação cruel ganhava crueldade na exposição do drama social, "Remígio tem índice de mortalidade infantil equivalente ao do Estado da Paraíba, que é 40% maior do que a  média nacional". A miserabilidade glauberiana era, assim, descrita em números frios, sem o calor de uma esperança, de uma política pública viável e urgente, como a confirmar uma indigência crônica e sem saída, que persistia desde os mais remotos tempos da colônia.

Em uma rápida consulta de dados do Portal ODM referentes ao município de Remígio, temos que em 2010 o percentual da população acima da linha de pobreza alcançou 60,52%, havendo ainda 19,6% de indigência; entre 1999 e 2011, a proporção de crianças menores de 2 anos desnutridas recuou de 23,7% para 2,4%; em 1991, o percentual de crianças que frequentavam o ensino fundamental era de 67%, passando para 92% em 2010. Se considerarmos no mesmo período o percentual de crianças que concluíram o ensino fundamental, o salto foi de 6% para 32%. Por fim, a taxa de mortalidade de crianças abaixo de 5 anos a cada 1.000 nascidos vivos decresceu de 61,5% em 1996, para 28,4% em 2010. Dados que refletem substancial melhora nos índices de desenvolvimento humano do município, entre a década de 1990 e a de 2010.

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Uma percepção sensitiva e outra concreta sobressaem na dolorosa releitura deste caderno, publicado há mais de 20 anos. No primeiro caso, com base nas relações cotidianas do mundo ao redor e nas informações colhidas em diversas fontes, sem uma verificação científica, a sensação de que houve uma saudável mudança, ainda que não completa, nas condições de acesso e cidadania das populações dos municípios menos favorecidos de nosso país, e aqui destacando em especial a região Nordeste, que deu um salto consistente de qualidade, não só considerando seus centros urbanos mais avançados, mas as regiões mais isoladas, em pleno agreste. A realidade descrita por Graciliano Ramos, filmada por Gláuber e pintada por Portinari, hoje, definitivamente, não é mais a mesma. 

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A percepção concreta se escora em trabalhos sérios como o produzido por Walquíria Rego e Alessandro Pinzani, cujo livro, Vozes do Bolsa Família - autonomia, dinheiro e cidadania, indico fortemente (aqui, uma boa resenha). Destaco da obra um trecho sugestivo, "(...) o fato de serem destinatárias de rendimento monetário não retirou essas mulheres da condição de pessoas pobres. Dispor de maior segurança relativamente à possibilidade de garantir alimentação à própria família, contudo, não tem um impacto meramente material, mas também psicológico. (...) As pessoas não precisam mais passar seu tempo pensando exclusivamente em procurar comida suficiente e podem dedicar-se a atividades (inclusive econômicas) diversificadas. (...) (e também) ganham mais autonomia ao se tornarem responsáveis pela maneira como o dinheiro da bolsa é usado". (p.205-206)

Seja como for, impressionam as marcas da pobreza crônica em que nossa sociedade estava imobilizada em um passado não muito distante, exposta nesse caderno da Folha de 1994. Considero indispensável retomar a discussão, reforçando os avanços que tivemos, com a opção de uma política econômica que se orientou pelo bem-estar social, a partir de 2003. Hoje, a discussão atravessada, oportunista, que reverbera ruídos em torno das vantagens de um mercado soberano e de um estado mínimo, só pode comprometer os ganhos que conquistamos desde o governo Lula. 

Talvez a razão principal desta postagem seja o convite para um olhar mais responsável sobre nossas conquistas e, mais além, sobre nossas responsabilidades futuras, para que as mazelas sociais não recuperem o folego em nossa nação. É muito triste ver a sanha do ódio inconsequente grassar, tolhendo aqui e ali a sensatez do debate. Que os torpes fantasmas que já nos assombraram nos idos de 1954 e 1964 não reencontrem refúgio por estas plagas, e se persistirem no intento, não nos restará alternativa, que sejam enfrentados e uma vez mais derrotados. 


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