Terminei há poucos dias este denso ensaio sobre a ascensão e a queda da Unidade Popular no Chile. São mais de 600 páginas que esmiúçam os acontecimentos de modo cronológico, desde o processo da eleição de Allende, em setembro de 1970, a movimentação golpista que procura interditar sua posse, a comoção nacional com o assassinato do general constitucionalista René Schneider; os primeiros meses relativamente bem-sucedidos, com a rápida nacionalização da economia e a distribuição de terras a pequenos proprietários; os problemas do segundo ano, em parte pelos desencontros entre os partidos de esquerda, muitas vezes em relação ao processo de tomada de terras, acelerado pelo MIR e pela ala mais à esquerda do PS, comandado pelo senador Carlos Altamirano, em parte pela ação cada vez mais vigorosa de movimentos de direita, como o Patria y Libertad, financiados pela CIA, que intensificou as covert actions, minando os avanços sociais.
Paralelamente a essas dificuldades, a Unidade Popular possui uma representação minoritária nas duas casas parlamentares, onde os projetos governistas são um a um derrotados, impedindo a aplicação das propostas da UP, determinando a progressiva paralisação do país. O empresariado e a burguesia se unem em suas ações de desestabilização econômica, como em outubro de 1972, com a gigantesca greve nos transportes, promovida pelos empresários de transportes. A asfixia como fórmula do caos se prolonga, ao longo do ano de 1973, e mesmo as tentativas de Allende em atrair os militares para formarem o gabinete de governo, redundam em fracasso. Após as eleições de abril de 1973, onde o impasse legislativo permanece (as oposições esperavam vencer para apresentarem um pedido de impeachment), a Democracia Cristã, as elites, a CIA e uma parcela crescente de militares de alto posto, decidem pelo golpe militar.
De 29 de junho, quando ocorre o Tanquetazo, um ensaio de golpe encenado por uma divisão de Santiago, até 11 de setembro, o país estará virtualmente em clima de guerra civil, e Allende apenas adia o que parece inevitável. O texto ganha contornos dramáticos, descrevendo cada movimento, tanto por parte do governo, quando por parte das oposições e dos grupos de direita. Os atentados recrudescem, as mulheres dos generais saem para o panelaço nas ruas, assim como os partidos de esquerda, em suas multitudinárias passeatas. Ocorrerá uma com 800.000 pessoas em 4 de setembro, em apoio a Allende, cujas cenas noturnas podem ser vistas no ótimo documentário A Batalha do Chile, de Patricio Gusmán. Pinochet foi empossado no Ministério da Defesa e no Comando do Exército, no lugar do general constitucionalista Carlos Prats, e bastaram 20 dias para o violento ataque ao Palácio de La Moneda e a derrubada da Unidade Popular.
Foi uma leitura educativa, para muito além do lugar comum dos ensaios e biografias bem-comportados, pois além do caudaloso texto embasado em farta documentação, hoje em dia é possível encontrar inúmeros vídeos sobre o período nas redes sociais. Assisti a documentários produzidos ao longo do governo Allende e após o golpe por equipes estrangeiras. No primeiro caso, encontramos a apresentação de uma experiência inédita na América Latina, um governo socialista eleito nas urnas; e no segundo caso, um esforço da ditadura em apresentar o país em calma, onde se é possível circular e registrar as cenas urbanas e entrevistar naturalmente as autoridades. No livro, sobressaem os tentáculos amaldiçoados do Departamento de Estado, que atuam com habilidade e desfaçatez. Nas imagens, temos os fatos que nem sempre são corroborados pelos relatos. Assim, no vídeo Pinochet y sus tres generales, os líderes golpistas se esforçam por passar uma imagem cálida, de um cotidiano caseiro quase idílico, enquanto a edição intercala depoimentos de populares, que falam dos desaparecimentos políticos.
A leitura de Fórmula para o Caos, de Luiz Alberto Moniz Bandeira, significou para mim o ápice, e de algum modo, o complemento definitivo desse estudo que realizo ao longo dos últimos 30 anos. Esta obra, imensa, saborosamente pretensiosa, consegue alcançar seus objetivos, ainda que recheada de pequenos problemas semânticos (equívocos como por exemplo, a data do golpe na Guatemala, indicada como 1964 em vez de 1954 (p.124); ou a recorrência no texto das palavras de ordem da esquerda, como 'Crear, Crear, Poder Popular'), mas que, em absoluto, retiram o brilho da seriedade da pesquisa e da qualidade do texto, fluente e que nos transmite a densidade do clima social e político daqueles anos. Além do que a narrativa histórica se estrutura no contexto do Cone Sul, ou seja, acompanhamos também capítulos onde vemos os desdobramentos do cenário político no Uruguai de Jorge Pacheco Areco e dos Tupamaros, e na Bolívia do presidente Juan José Torres - em ambos os casos, a dolorosa escalada do fim dos direitos humanos e políticos, patrocinada pela CIA, rumo a brutais regimes de exceção.
Paralelamente a essas dificuldades, a Unidade Popular possui uma representação minoritária nas duas casas parlamentares, onde os projetos governistas são um a um derrotados, impedindo a aplicação das propostas da UP, determinando a progressiva paralisação do país. O empresariado e a burguesia se unem em suas ações de desestabilização econômica, como em outubro de 1972, com a gigantesca greve nos transportes, promovida pelos empresários de transportes. A asfixia como fórmula do caos se prolonga, ao longo do ano de 1973, e mesmo as tentativas de Allende em atrair os militares para formarem o gabinete de governo, redundam em fracasso. Após as eleições de abril de 1973, onde o impasse legislativo permanece (as oposições esperavam vencer para apresentarem um pedido de impeachment), a Democracia Cristã, as elites, a CIA e uma parcela crescente de militares de alto posto, decidem pelo golpe militar.
De 29 de junho, quando ocorre o Tanquetazo, um ensaio de golpe encenado por uma divisão de Santiago, até 11 de setembro, o país estará virtualmente em clima de guerra civil, e Allende apenas adia o que parece inevitável. O texto ganha contornos dramáticos, descrevendo cada movimento, tanto por parte do governo, quando por parte das oposições e dos grupos de direita. Os atentados recrudescem, as mulheres dos generais saem para o panelaço nas ruas, assim como os partidos de esquerda, em suas multitudinárias passeatas. Ocorrerá uma com 800.000 pessoas em 4 de setembro, em apoio a Allende, cujas cenas noturnas podem ser vistas no ótimo documentário A Batalha do Chile, de Patricio Gusmán. Pinochet foi empossado no Ministério da Defesa e no Comando do Exército, no lugar do general constitucionalista Carlos Prats, e bastaram 20 dias para o violento ataque ao Palácio de La Moneda e a derrubada da Unidade Popular.
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Foi uma leitura educativa, para muito além do lugar comum dos ensaios e biografias bem-comportados, pois além do caudaloso texto embasado em farta documentação, hoje em dia é possível encontrar inúmeros vídeos sobre o período nas redes sociais. Assisti a documentários produzidos ao longo do governo Allende e após o golpe por equipes estrangeiras. No primeiro caso, encontramos a apresentação de uma experiência inédita na América Latina, um governo socialista eleito nas urnas; e no segundo caso, um esforço da ditadura em apresentar o país em calma, onde se é possível circular e registrar as cenas urbanas e entrevistar naturalmente as autoridades. No livro, sobressaem os tentáculos amaldiçoados do Departamento de Estado, que atuam com habilidade e desfaçatez. Nas imagens, temos os fatos que nem sempre são corroborados pelos relatos. Assim, no vídeo Pinochet y sus tres generales, os líderes golpistas se esforçam por passar uma imagem cálida, de um cotidiano caseiro quase idílico, enquanto a edição intercala depoimentos de populares, que falam dos desaparecimentos políticos.
A leitura de Fórmula para o Caos, de Luiz Alberto Moniz Bandeira, significou para mim o ápice, e de algum modo, o complemento definitivo desse estudo que realizo ao longo dos últimos 30 anos. Esta obra, imensa, saborosamente pretensiosa, consegue alcançar seus objetivos, ainda que recheada de pequenos problemas semânticos (equívocos como por exemplo, a data do golpe na Guatemala, indicada como 1964 em vez de 1954 (p.124); ou a recorrência no texto das palavras de ordem da esquerda, como 'Crear, Crear, Poder Popular'), mas que, em absoluto, retiram o brilho da seriedade da pesquisa e da qualidade do texto, fluente e que nos transmite a densidade do clima social e político daqueles anos. Além do que a narrativa histórica se estrutura no contexto do Cone Sul, ou seja, acompanhamos também capítulos onde vemos os desdobramentos do cenário político no Uruguai de Jorge Pacheco Areco e dos Tupamaros, e na Bolívia do presidente Juan José Torres - em ambos os casos, a dolorosa escalada do fim dos direitos humanos e políticos, patrocinada pela CIA, rumo a brutais regimes de exceção.
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