17 janeiro 2013

Fragmento noir



Donaldo retirou o dinheiro do caixa eletrônico e sorriu, um sorriso nervoso, de quem tem um plano estabelecido para aquela quantia sacada. Passou pelos seguranças da agência e, do lado de fora, por dois componentes da guarda civil, que conversavam animadamente. Passou tão próximo que seu coração disparou, e pode distinguir que falavam sobre futebol. A informalidade e a distração dos guardas o recompuseram, permitindo que caminhasse até o ponto de ônibus sem despertar suspeita.

Tomou o 174B porque estava menos cheio, podendo fazer a viagem sentado. Olhava a paisagem com total indiferença e não se deu conta de sua transformação, cada vez mais opaca e cinzenta. Pensava em seu plano, questionando-se se encontraria com facilidade o homem acertado. Repassou mentalmente mais uma vez o que faria, tentou sorrir pela segunda vez. Donaldo era um homem sério, conciso, com uma vida melancólica até ali. Esforçou-se por lembrar da última vez que sorrira duas vezes num dia, pensou nos tempos da tenra infância como possibilidade hipotética. Não gostava de recordar, aprendera a desprezar a miséria humana e a sua vida tornara-se um interminável recomeçar. Agora que estava próximo de um novo passo, concentrava-se na voz que combinara por telefone o trabalho e o preço, tentando associá-la ao tipo de perfil físico mais adequado.

Ao descer do ônibus, olhou para um canto mais afastado e percebeu um homem de capa escura a ajeitar o chapéu, sinalizando para os fundos do beco. As nuvens cinzentas se acumulavam nos céus, as lufadas de vento em forma de redemoinho anunciavam a proximidade da tormenta. Cumprimentaram-se calados e Donaldo entregou os dois mil tratados e mais uma foto, pedindo que agisse o mais rápido possível. Até amanhã estará resolvido, foi a resposta do estranho, que desapareceu no meio da multidão. Donaldo obtivera boas referências do profissional, mas o regresso seria estranhamente penoso, sem nenhuma dúvida quanto ao acerto fechado, porém com a solene visão do desfecho a acompanhá-lo em imagens progressivamente dolorosas.


Nenhum comentário: