18 janeiro 2013

Fragmento amoroso



"(...) Suas sombras, sinuosas, projetadas pelo sol imberbe do dia, avançava sob os passos contidos superando os pequenos obstáculos, o solo pedregoso, os tufos de gramíneas mais crescidos, os muros formados pelas pequenas sebes ou quando não, a encosta livre e acentuada que esticava e deformava as sombras ambulantes, estendendo-as no ritmo da marcha até a beirada do rio. Por vezes, eram obnubiladas de modo irregular pelos abrigos das copas de mutambos, de paineiras, para ressurgir um pouco adiante, livres, desenhadas em pleno trajeto. O sol banhava os corpos de lado, ainda em seu frescor matinal, e além de marcar as sombras dos dois caminhantes, espelhava o sorriso frontal dela, quando deixava de observar o chão à sua frente, para mirar os gestos do companheiro, a face em suave penumbra, a porção visível de sua boca, que se movia entre as poucas falas e o silêncio inundado pela manhã. Por vezes, o que captava era o sussurro discreto, e se confundia entre o que imaginava e o que apreendia, os sons invisíveis que ressoavam em conjunção com o voo dos pássaros e com o marulho distante da rebentação.

Podia entregar-se ao prazer de imaginar a fala dele e confirmar sua interpretação a partir do sorriso conivente que recebia, junto com as palavras finais que insistiam em se manter caladas. Por vezes não era o sol da manhã, mas os passeios sob a brisa do crepúsculo, a conversa na varanda, imersa na garoa soturna da noite, o despertar sob as luzes amenas e difusas da aurora. Quantas vezes os toques a acentuar as palavras gentis, as esperas que sucediam os árduos argumentos, percorriam as memórias de uma vida marcada por referências comuns, intensamente comungadas. E deixava-se levar pelo emaranhado dos sabores, das tentações, das recusas de um tempo largamente generoso, sem discernir o que fora mais adorável compartilhar.

De volta ao presente, sabia que enveredava por caminhos que não deixavam de revelar desejos, que a alma leve emanava e simultaneamente abrigava. O percurso pedregoso não era mais do que uma sugestiva metáfora de um encontro inquieto, e a casinha na praia, o doce tecer do destino. O cheiro da água lhe aprofundava as reminiscências vividas e ainda por viver, e transpunha-se para a janela da cabana, a deslizar com o pequeno barco, nas ondulações de um horizonte indiscernível entre o céu e o mar, marcado pelo luar incógnito, encoberto por nuvens revoltas, de bordas douradas. Dedilhava suavemente a franja de sua manta, envolta no pescoço, enquanto deixava-se lamber pelo vento noturno, e logo, pelos braços que surgiam do escuro do quarto e a acolhiam em movimentos delicados, e uma vez no leito, recoberta pelos lábios devotos, em beijos lhe narravam poesias de amor. (...)"


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