"(...) Suas
sombras, sinuosas, projetadas pelo sol imberbe do dia, avançava sob os passos
contidos superando os pequenos obstáculos, o solo pedregoso, os tufos de
gramíneas mais crescidos, os muros formados pelas pequenas sebes ou quando não,
a encosta livre e acentuada que esticava e deformava as sombras ambulantes,
estendendo-as no ritmo da marcha até a beirada do rio. Por vezes, eram
obnubiladas de modo irregular pelos abrigos das copas de mutambos, de
paineiras, para ressurgir um pouco adiante, livres, desenhadas em pleno trajeto. O sol banhava os corpos de lado, ainda em seu frescor matinal, e além
de marcar as sombras dos dois caminhantes, espelhava o sorriso frontal dela,
quando deixava de observar o chão à sua frente, para mirar os gestos do
companheiro, a face em suave penumbra, a porção visível de sua boca, que se
movia entre as poucas falas e o silêncio inundado pela manhã. Por vezes, o que
captava era o sussurro discreto, e se confundia entre o que imaginava e o que
apreendia, os sons invisíveis que ressoavam em conjunção com o voo dos pássaros
e com o marulho distante da rebentação.
Podia
entregar-se ao prazer de imaginar a fala dele e confirmar sua interpretação a
partir do sorriso conivente que recebia, junto com as palavras finais que
insistiam em se manter caladas. Por vezes não era o sol da manhã, mas os
passeios sob a brisa do crepúsculo, a conversa na varanda, imersa na garoa soturna
da noite, o despertar sob as luzes amenas e difusas da aurora. Quantas vezes os
toques a acentuar as palavras gentis, as esperas que sucediam os árduos
argumentos, percorriam as memórias de uma vida marcada por referências comuns,
intensamente comungadas. E deixava-se levar pelo emaranhado dos sabores, das
tentações, das recusas de um tempo largamente generoso, sem discernir o que
fora mais adorável compartilhar.
De
volta ao presente, sabia que enveredava por caminhos que não deixavam de revelar
desejos, que a alma leve emanava e simultaneamente abrigava. O percurso
pedregoso não era mais do que uma sugestiva metáfora de um encontro inquieto, e
a casinha na praia, o doce tecer do destino. O cheiro da água lhe aprofundava
as reminiscências vividas e ainda por viver, e transpunha-se para a janela da
cabana, a deslizar com o pequeno barco, nas ondulações de um horizonte
indiscernível entre o céu e o mar, marcado pelo luar incógnito, encoberto por
nuvens revoltas, de bordas douradas. Dedilhava suavemente a franja de sua
manta, envolta no pescoço, enquanto deixava-se lamber pelo vento noturno, e
logo, pelos braços que surgiam do escuro do quarto e a acolhiam em movimentos
delicados, e uma vez no leito, recoberta pelos lábios devotos, em beijos lhe
narravam poesias de amor. (...)"