02 julho 2011

En passant

Montmartre, 2010


Havia horas que o jovem K. tateava pelos caminhos de Sacre Coeur. Desde que descera na estação Anvers, rodeava em meio às lojas de souvenirs, tentando se convencer a escalar os caminhos até a igreja e, mais além, até a praça du Tertre. Por fim, avançou sob o vento cortante daquela manhã, submerso em pensamentos vagos. Contornou o caminho mais direto, o funicular, e subiu as infindáveis escadarias até o topo da colina.

Pensava na estação Bonne Nouvelle, ali próxima, o conto de Benedetti que começava e terminava na estação... pensava no impressionante desfecho, original diante de tudo que podia imaginar... Pensava nas verdades não ditas e nas verdades ouvidas e pensava nas situações da vida que o acompanhavam sem se definir. De quando em quando, voltava-se para o mundo ao redor, as escadarias, a velha eslovaca andando sobre a neve endurecida e esbravejando para os caminhantes imaginários, a mãe e filha conversando e fotografando, entre sorrisos e carinhos, o cume que se avizinhava, o ar gélido que penetrava-lhe os pulmões, o calor do esforço em contraponto com o frio penetrante...

Uma vez no alto, observou a cidade, seu entramado raso, sem os espigões das metrópoles brutalizadas, a névoa subtil embaçando a visão, e mais uma vez o vento tangendo, acariciando pesadamente o rosto barbado, colhendo a ele e aos poucos turistas que, estáticos, desejavam apreciar alguma coisa da paisagem. Não se sentia disposto a arredar pé dali, não tinha pressa, seu compromisso era com o dia, essa flânerie sem direção, aportando em todos e quaisquer lugares, um violinista tocava sem inspiração suas melodias desoladas, e no chão, o pedido por umas moedas.

Por fim deu meia-volta e seguiu os caminhos meândricos até a praça, que no verão ficava atulhada de turistas. Pois agora o inverno os afugentava e ela tornava-se aprazível, uns poucos tripés com quadros, seus autores distraídos em pequenas rodas de conversa. K. seguiu por um caminho que não conhecia, passou por pequenos restaurantes que abriam as portas e por cafés com poucos visitantes. Avançou até o fim da praça, seguiu por uma rua secundária, virou à esquerda e por uma passagem estreita, alcançou outra escadaria. Agora, a descida, interrompida por breves terraços que suavizavam para o transeunte. Sentia-se em forma, mas aproveitava as paradas para olhar para as janelas ao fundo, os telhados, o corredor coberto de vegetação, as elegantes luminárias, o silêncio que sibilava nos ouvidos...

Assobiava a trilha de Bonanza, cujos capítulos recuperou na tevê, nas noites em que se recolheu afugentado pelo frio. A melodia o remeteu à imagem de Ben, o patriarca de Ponderosa, e também a Ben, o cachorro do amigo Klaus. Vira o cão pela última vez havia meses e estava velhinho, andando com dificuldades, e lembrou da véspera da despedida, acariciando o bicho que parecia pressentir o adeus. "Não mais o verei", pensou K. enquanto descia o último trecho de escadas.

Chegou por fim à base, e tomou a rua transversal, que descia até um pequeno largo, com mais movimento de pessoas, e no lugar de dirigir-se à estação de metrô e dar por encerrado a caminhada matinal, decidiu tomar um café. Escolheu um pequeno bistrô, agradável e mais afastado, no meio de uma viela sem saída. Entrou como se fosse um pistoleiro em um salão do velho oeste (ainda sob os efeitos de Bonanza) e notou as mesinhas já preparadas para o almoço. 

No canto esquerdo, um casal tomando o desjejum, umas duas mesas do meio ocupadas por homens que interromperam a conversa para observar a entrada do forasteiro e ao fundo, uma jovem escrevendo, como a esperar a diligência da tarde, com uma enorme bagagem ao lado. K. dirigiu-se para os fundos, próximo da garota, que não parava de escrever. "Talvez faça minhas anotações também", pensou. Sentou-se na mesinha próxima da jovem e pediu uma taça de café noir, e se deu conta de que não estava inspirado a escrever.


Já não chamava mais a atenção do pequeno público, que retomou a conversação mais parecida a um murmurar mântrico. Foi quando a garota moveu suas coisas para mais perto de si, como a convidar K. a sentar-se mais próximo. Ele desculpou-se pelo incômodo, o movimentar difícil por entre as mesinhas e o pequeno espaço do lugar. Seu francês deve ter soado tão desastrado quanto sua chegada, ela lhe abriu um sorriso e perguntou sua origem. Subitamente K. animou-se com as circunstâncias e passou a organizar as ideias e a fala na língua que pouco conhecia. A jovem abriu-lhe outro sorriso, suspendendo a escritura, e com um sinal de positivo, mais um gesto facial, confirmou-lhe que seu francês era bom. E conversaram.

Chamava-se Heléne e acabara de chegar do Laos, depois de dois meses de viagem. Estava carregada de pertences, roupas, caixas de chá verde, um chapéu típico da Indochina, e despertava a atenção de K. pelo modo de se expressar, pelas palavras pronunciadas com vagar, pela serenidade do olhar, aberto para expor todas as experiências de uma viagem apaixonante. Falaram do Laos, de música (a jovem era pianista), de Estrasburgo e de São Paulo, da beleza de uma vida sem ganâncias, marcada pelo ritmo da pobreza coletiva, e do respeito ao próximo. Falaram de um mundo tão amplo e ao mesmo tão pequeno, a ponto de permitir aquele encontro, a convergência de um peregrinar por caminhos opostos.

Ela pediu água quente para o chá, ele outro café. Não se incomodaram com o espaço acanhado do Café e vez ou outra silenciavam por segundos, era quando o blues de fundo fruía solene, já dividindo o espaço com o ronronar monocórdio das pessoas que chegavam para o almoço. As garçonetes iam e vinham, levando pedidos e trazendo pratos. Por fim, depois do terceiro café e de saberem um pouco mais do cotidiano de cada um, K. alegou que tinha de partir. A jovem retirou do caderninho uma folha e escreveu umas frases na língua asiática, reproduzindo a sonoridade fonética. Ele tomou o papel e despediu-se. 

As coisas terminariam por aí, com K. levantando-se, outra vez de modo a chamar a atenção dos presentes e partindo após um beijo casto na face da bela mulher... Ela o acompanhou até a saída do bistrô. A passagem pelas mesas, atravessando pedaços de conversas íntimas, relatos cotidianos, tensões, projetos, terminou por despertar-lhes a memória de uma longa história em comum, de uma vida mundana intensa, pactuada ao longo dos anos de convívio. Enquanto se desviavam das mesinhas, cada qual sorriu pelas lembranças retomadas. Uma vez do lado de fora, sob o vento enregelante que soprava dos baixios de Montmartre, o senhor K. alinhou os cabelos de Heléne com o carinho habitual e se despediram, o longo suspiro dividido nos lábios, a certeza compartida de que a aventura prosseguiria.


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