Começo do semestre letivo no Curso de Comunicação. Turmas novas. Pouca intimidade, nenhum segredo, muita sutileza para as aproximações que sempre crescem ao longo do ano. O início do programa de Teoria da Comunicação II, naquele ano, voltava-se à revisão das funções de linguagem, de Roman Jakobson. Como estratégia, considerei mais eficaz passar um vídeo documentário originalmente produzido para a televisão, tendo recebido prêmios importantes, como XXII Prêmio Vladimir Herzog, nas categorias Melhor Reportagem de TV e Melhor Imagem de TV 2000.
Um vídeo que certamente poderia auxiliar os alunos a reverem as funções, pois, de fato, sua narrativa transitava entre a função emotiva, beirando, em muitos momentos certos clichês, ao exercício da função poética, tanto pela confecção do texto verbal quanto pelas imagens surpreendentes, enfim... acreditei que poderia cumprir meu objetivo, além de proporcionar uma boa discussão social, sempre bem-vinda. Quase o Peso de um Passarinho traz a desnutrição infantil como tema. Interior de Alagoas, fim dos anos 90. São João da Tapera é um lugar onde a morte é mercadoria, como mostram as paredes do empório da cidade que abriga pequenos caixões nas paredes, junto a vassouras e outros produtos. Os índices de crianças mortas, desmedidos.
Durante toda a semana em que passei este material, ouvi os mais variados comentários. Graças à contundência de certas cenas, ouvi críticas negativas, ao filme e a mim mesma - por ter escolhido aquele trabalho, ouvi silêncios que me impediram de avançar em desdobramentos e limitaram minhas expectativas, ouvi algumas falas sensibilizadas.
Era a última aula da semana, e, confesso que, desanimada, iniciei a exibição do documentário lamentando a escolha, o fracasso da proposta. Estávamos na penumbra, as cortinas cerradas impediam que o sábado se abrisse atrás dos janelões de vidro. Os alunos se acomodavam emudecidos, apenas os sons de carros de boi inundavam o espaço aquietado. O filme não havia alcançado a metade, quando do fundo da classe, recebo um bilhetinho, guardado até hoje.
“Meus pais são de Caboclo, distrito de São José da Tapera. Eles nunca foram políticos ou ‘coronéis’. Tenho tios, tias e primos que vivem lá até hoje.
Já tive uma irmã (que seria a mais velha), que faz parte das 143 crianças mortas. Minha tia já perdeu 4.
Já vi isso ao vivo!
É ‘engraçado’, mas às vezes não acredito que estou aqui.
Gilvan.”
Ele estava lá. Frequentando um dos melhores cursos de Comunicação do país, entre alunos de uma classe social muito diferente daquela de onde viera. Eu também custei a acreditar no que estava escrito, movi minha cabeça pra trás, procurando o autor do bilhete, logo me deparei com os olhos marejados de Gilvan. Ele simplesmente consentiu com a cabeça e ficamos assim ternamente envolvidos pela surpresa da origem.
Ao final do vídeo, propus o debate, olhei pra ele, mas senti que Gilvan não gostaria que eu dissesse qualquer coisa sobre a descoberta. Revi as funções, mas estava atordoada pela presença do acaso, mal consegui terminar a aula. Quando todos saíram da sala, ele se aproximou de mim ainda emocionado, contou-me sobre sua família que saiu daquela cidade, sua formação em Educação Física , sobre a empresa em que trabalhava e que custeava seus estudos. Ficamos próximos. Ao longo do semestre, soube que tinha uma filha quase da idade do meu.
Certa vez aprendi o sentido da palavra desastre – sair da rota dos astros... Gilvan escapou à rota destinada a muitas crianças de São João da Tapera, como sua irmã, seus primos. Estava se formando em Publicidade e Marketing, atuava no mercado com promessas de um futuro diferente. Aqui, como na tragédia grega, em que os deuses traçam o destino dos heróis que os desafiam, parece que os astros recolheram Gilvan da rota onde ele teimava brilhar...