25 abril 2010

Naquela manhã


No quarto dia fui o primeiro a despertar na casa. Olhei através da janela, uma névoa profunda encobria o parque, a manhã permaneceria escura por algum tempo, não quis olhar para o relógio, sabia que era bem cedo para todos da casa e isso me bastava.

Fiz o possível para não ranger a escada de madeira e ao chegar ao pequeno saguão de entrada, lá estava Ben, o velho cão negro, que parecia me aguardar. Hoje será comigo, meu caro... Ben se animou quando me viu com a coleira nas mãos e não demorou, avançávamos pela neve rumo ao descampado.

O frio confundia-se com o silêncio, promovendo uma paisagem lúgubre e tornando-nos dois dedicados aventureiros com a alma entorpecida. Olhei para Ben, que como de costume mostrava disposição exemplar na caminhada, parecia conhecer muito bem o trajeto de todas as manhãs, ainda que sob o manto branco, que nos dificultava o passo. Era a primeira vez que ousava sair para o passeio matinal, no lugar do pequeno Rubi. Espero que ele não se zangue... não, acho que vai me agradecer por poupá-lo do rigor da tarefa...

E assim avançávamos, eu e Ben, afundando pés e patas e deixando nossos rastros pelo caminho. Teríamos de percorrer uns duzentos metros, até o final da rua, quando teríamos o descampado branco, imenso, e no meio, uma passagem estreita, que conduzia até o riacho. Gostava de fazer o percurso em caminhadas vespertinas, eventualmente acompanhado pelo próprio Ben, Rubi e seu pai, Klaus, por isso, mesmo sob o negrume da manhã, sabia como proceder no ambiente ainda pouco familiar.

Ben movia-se ligeiro, como que orientando-me em meio à bruma gélida. Olhava-o em seu esforço, dificultado pela artrose, que em algum momento sinalizaria o momento de regressar. Éramos dois pontos escuros singrando em um panorama desolado naquela manhã de sábado. Os poucos automóveis estacionados estavam cobertos por grossa camada de gelo e dava gosto em imprimir a mão e deixar um registro de nossa passagem...

Alcançamos o descampado e logo enveredamos pelo atalho até o riacho, mas sabia que não chegaríamos até ele. Nossas narinas despejavam furiosamente o ar aquecido na atmosfera, e notava que o esforço do cão tornava-se mais doloroso. Mais adiante, teríamos um banco onde poderíamos parar para descansar. Mas o frio insuportável não permitiu essa possibilidade, comecei a sentir dor nos ossos. Vamos, Ben, vamos voltar... e abaixei-me para lhe sussurrar palavras convincentes, acariciando-lhe o pescoço.
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Olhei para o horizonte, a difusa luz solar despontava preguiçosamente, em um processo que levaria quase uma hora para estabelecer a luminosidade opaca, encoberta, que perduraria imutável até o meio da tarde, quando começaria o lento processo do crepúsculo. Tínhamos, a cada cinquenta metros, o auxílio de uma luminária que nos permitia identificar o espaço ao redor. E aquele silêncio descomunal, sem o canto de aves, sem presença humana, ainda longe do primeiro murmulho aconchegante das águas...

Vamos, Ben... seja bonzinho, vamos virar dois picolés se continuarmos... mas Ben, ainda que o corpo fraquejasse, queria prosseguir. Talvez entendesse apenas as ordens em alemão, ou talvez fosse mesmo mais resistente do que eu imaginava. Alcançamos o banco enregelado à beira da trilha e demos mais alguns passos quando o cão se deteve e olhou para trás, latindo pela primeira vez. Vi então a silhueta do pequeno Rubi despontar, esbaforida, com suas grossas botas de couro, o capote e o gorro de feltro, que lhe davam o ar de um jovem Amundsen...

De pronto colocou-se ao meu lado, em sua quietude habitual, como se aquele fosse desde sempre seu lugar. Seu semblante, à medida que se acercava de nós, desprendia um brilho que eu reconhecia como de satisfação. Era comum esse brilho quando fazíamos a refeição, quando assistíamos um filme todos juntos e agora, quando dividíamos a alegria de Ben. Era visível como as pequenas coisas podiam iludir um quadro psíquico tão doloroso e recompor o prazer de compartilhar. Eu o via agarrar esses momentos de apaixonada lucidez, tal qual um mergulhador em seu inevitável emergir das águas, retomando o oxigênio para a vida... Seguimos adiante.

Bom vê-lo, Rubi... que trio, não é mesmo?... Rubi, Ben, Bin... realcei a aliteração em b, Rubi, Ben, Bin... duas, três vezes, até que ele começou a acompanhar, Rubi, Ben, Bin, a nossa comunicação possível, divertida, que ecoou pela esplanada alva, tombada pela mudez invernal. Ah, a aurora matinal e seu vento frio a açodar o rosto, desvelando-me sentimentos vivenciados e há muito esquecidos, a sensação evanescente de se doar para o momento e aproveitar os mínimos detalhes...

Permanecemos silentes e restou o movimento dos nossos corpos em marcha, o ruído macio da neve sendo espremida pelos pés e patas, a imagem da fieira de árvores desfolhadas, ao longe, à espera da primavera e por fim, o rugir leitoso da correnteza. Do outro lado, as casinhas sossegadas, sem pressa em despertar.

A claridade se pronunciou e com ela, o regresso menos incômodo, um cão, um menino e um homem entregues aos acasos fortuitos, felizes por nada, em meio à placidez da manhã...


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