12 abril 2010

Caminhos e descaminhos midiáticos (2)



Há precisos oito anos o golpe midiático na Venezuela agonizava. Sem apoio popular, Pedro Carmona Estanga, que se autoempossou ditador naquela manhã, proclamava para uma cadeia de emissoras, que o país caminha rapidamente para uma recuperação da normalidade institucional... Do lado de fora do palácio Miraflores, sede do governo, a realidade era outra, e a população, em comunicação por celulares, mobilizava-se.

Os três dias turbulentos de abril, 11,12 e 13, podem ser acompanhados na edição cronológica e didática do filme A revolução não será televisionada, produzido por uma equipe de tevê irlandesa que realizava um documentário sobre o governo de Chávez. Os fatos a jogaram no meio da intentona golpista, e podemos ter uma ideia do que foi, por exemplo, a participação da mídia televisiva do país, abraçando o momento com uma fúria incontida - brutalidade e desfaçatez integradas em um amplo ato inconstitucional. Gente como Guillermo Zuloaga, o dono da Globovisión, ou de Marcel Granier, da RCTV, que tendo a concessão de sua emissora cassada, passou a circular pelo continente como convidado especial dos veículos de comunicação privados, posando como um empresário democrata perseguido por um poder tirânico...

O golpe midiático de 2002 na Venezuela foi uma clara manifestação da arrogância de uma burguesia aristocrática (tipicamente latinoamericana) que se arroga o direito de se perpetuar no poder. Não tem a mínima noção de quem constitua a parcela mais considerável da sociedade, seus anseios e suas necessidades como cidadãos. Não tem a dimensão do que seja o poder senão a necessária resultante dos seus negócios, urdidos em proveito próprio. Ainda é possível ouvir Carmona persistir no discurso de que este é um processo de profundas raízes democráticas... ao mesmo tempo que Caracas e outras cidades venezuelanas entravam em convulsão, com a população dos barrios saindo às ruas.

O desprezo que a aristocracia alimenta pelo povo só é inferior à sua ambição classista pelo poder. Anos atrás, um poeta marginal comentou em um seminário que ele e sua gente tinha deixado de ler os jornalões por não encontrar ali nenhuma verdade que repercutia em sua quebrada. Achei na ocasião um comentário extremado, mas com o tempo pude entender perfeitamente o que ele dizia. Em outras palavras, o registro cotidiano da realidade feito pela grande mídia prescinde da análise cuidadosa das rebarbas feias, sujas e malvadas da sociedade urbana. Ou seja, se o povo souber o seu lugar cativo na hierarquia social, nenhum problema, a sociedade pode viver em 'harmonia'. Mas se um mestiço (ou um operário) toma o poder, o desprezo desponta como um sintoma incontrolável, o esprit de corps burguês se manifesta de maneira poderosa para disseminar o rancor, acreditando-se ameaçado, não poupando esforços, até o ponto em que se vê superado pela reação indignada da maioria. Então, a coragem extemporânea sucumbe para sua condição mais habitual, a covardia e a arrogância enrustida em estado letárgico, o rumor como arma conspirativa.

O povo dos morros caraquenhos desceu rapidamente para ocupar os espaços do poder, tão logo se deu conta do que ocorria. Com um movimento sincronizado, inundou as ruas, clamando por aquilo que parecia ser o mínimo, a voz do presidente deposto. Queriam ouvir se Chávez havia de fato renunciado ou não, mas da sua própria boca. Foi um movimento que, uma vez ação, não se conteve nem tampouco foi contido, e as sequências da retomada do palácio de Miraflores pelos militares constitucionalistas e pelos ministros, compartilhada pela emoção popular, é belíssima.

Manipulação desavergonhada como esta, promovida da maneira atabalhoada pela grande mídia, parece improvável no futuro. Sua política substitui a ação intempestiva de outras épocas (1964 no Brasil, 1973 no Chile, 1976 na Argentina, 2002 na Venezuela) pela ação comedida, de demolição lenta (ou até a ocultação) da realidade que não lhe interessa. Cabe a ela um papel mais regular, ainda que medíocre em seus propósitos conspiratórios. Assim, é necessário divulgar à náusea, que na Venezuela não existe liberdade de expressão (mesmo com todos os canais e jornais oposicionistas em pleno funcionamento); que na Argentina os K (Néstor e Cristina) representam um risco à democracia; na Bolívia se ridiculariza e se questiona a liderança de Morales (a economia sulamericana que apresentou proporcionalmente o maior crescimento econômico em 2009), e que no Brasil o governo Lula é autoritário, inepto, e mais recentemente, de incentivar a disputa entre Norte e Sul e ricos e pobres...

A luta, verdade seja bem dita, é pela retomada do poder político, o que fará das eleições brasileiras deste ano uma briga de foice no escuro, violenta, com prováveis episódios de intolerância por parte da elite econômica e branca do país. Essa burguesia pretensamente aristocrática, em seu afã em se mostrar como o caminho mais bem talhado para a condução do país, jogará todo o seu ódio reciclado contra os que dirigiram este país nos últimos oito anos, sugerindo que nada de mais aconteceu, menosprezando o efeito dos programas sociais, minimizando o ciclo de crescimento econômico ou o realinhamento de nossa política externa, rompendo com a atávica dependência com o mercado estadunidense... Se nada aconteceu, o problema será explicar como se chega a um índice de mais de 80% de aprovação popular, comprovado pelos diversos institutos de pesquisa do país!...

O rancor permanecerá nos discursos dos sábios midiáticos e dos pseudo-intelectuais, que no mais das vezes, se resumem a animadores de plateia. Longe de nos preocupar com essa turma mal-humorada - até porque rancor ou mal-humor nunca foram, por si só, responsáveis pela conquista do poder - acompanhemos o seu crescente desespero. Uma demonstração já foi dada nesse encontro promovido pelo instituto Millenium (?!?), que reuniu umas vozes aflitas, bem-nutridas, dispostas a proferir toda sorte de destempero. O destaque fica para um escrevinhador de uma revista semanal (que despenca em vendagem) ao dizer que a imprensa tem de acabar com o 'isentismo' e o 'outroladismo', com essa história de dar o mesmo espaço para todos...".

Pobres manifestações protofascistas como essa prometem rechear os espaços dos 'analistas' da grande mídia. A questão é, o que podem oferecer se retomarem o poder de fato? Eu não tenho dúvidas em dizer que o tempo desses infecundos ideólogos do neoliberalismo já passou, e que a ladainha raivosa é o sinal mais evidente do seu fenecer...

Por mais que os esforços de mudança social promovidos nestes oito anos tenham chegado a bons resultados, penso na divisão do país - não essa a que os arautos da grande mídia afirmam que Lula é responsável, mas a divisão perpetrada ao longo de cinco séculos de desmandos aristocráticos - o que me conduz à sentença de Josué de Castro, ainda atual: este país é dividido em dois, os que não comem e os que não dormem; os que não comem porque não têm o que comer e os que não dormem, com medo dos que não comem.

A cegueira do viés dos veículos hegemônicos de comunicação é avalizar ideais que preservam os mecanismos dessa autêntica e dolorosa divisão, que suprime qualquer direito à liberdade, igualdade e fraternidade social.



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