Bruxelas ao anoitecer |
Falar em desgaste seria redundância para uma vida marcada por repetições e desestímulo. O Vendedor aproximava-se de casa, após o encontro com o amigo Batista, com a mesma expressão de cada dia, ensimesmado, descontente consigo mesmo com a conduta que o afastava do mundo, o caminhar insosso, a pastinha sempre na mão direita e esse zumbido persistente nos ouvidos, que ganhava ressonância ao adentrar o espaço mais silencioso de seu apartamento. Enquanto avançava, não animava-se a mirar nos olhos das pessoas, função essencial em seu trabalho de ofício. Estava extenuado em enquadrar os olhos das pessoas que transformava em compradores por excelência, em sorver aos bocados o cafezinho frio de cada encontro em potencial para falar das mil e uma utilidades dos produtos de beleza que vendia. Estava cansado em sorrir, acariciar o ego dos interlocutores ao lhes garantir a felicidade se adquirissem seus cremes e demais componentes pegajosos, e talvez em razão disso desejava chegar logo e se enfurnar sob os lençóis, sem pensar em mais um dia desperdiçado, sem pensar na noite que passaria entre torpores e pesadelos.
Abriu a porta, jogou a pastinha na poltrona e dirigiu-se até a cozinha. Com uma latinha de cerveja, passou a observar o vazio que o separava da janela do prédio em frente. Pensou nos filhos distantes, de que modo poderia recebê-los bem naquele... naquele ambiente vago, com um jeito tão provisório, e lançou um olhar para dentro, para a cozinha espartana, e relembrou a sala com a poltrona secular, o tapete e a mesa redonda, a estante com os romances que não podia reler, e o quarto com as únicas mobílias, a cama de casal desarrumada e o armário. Pensou nas peças de roupas por lavar, por passar, espalhadas aqui, acolá, pensou na necessidade em organizar a bagunça que se acumulava, as garrafas e as latinhas sobre a pia, a sujeira acumulada nos cantos, voltou-se para a janela, para apreciar o vazio sinistro que separava os dois edifícios, Por que não volto para o Jequitinhonha?, e pôs-se a recordar da edícula que dispunha no sítio de um amigo, onde passara um ano no meio de gente simples, despertando, vivendo e adormecendo em meio aos sons da natureza, dos latidos de Cabeção e Max, os cães da casa, das gentilezas da vizinhança, do mastigar noturno de Dálmata, o cavalo malhado, que gostava de alimentar-se da relva crescida em torno da casinha, fazendo dos seus sacolejos bucais uma aconchegante cantiga de ninar...
Não... tenho de resolver minha vida aqui... pensava o Vendedor, cansado da armadilha que o destinho lhe pregara. A vida que se escoava longe dos filhos, da mulher, dos princípios alimentados na juventude, a vida com as vendas, maldito trabalho, que o separava de sua sociologia e que não lhe proporcionava mais do que a gastrite que o devorava pelas entranhas. Sobrava-lhe os vãos pensamentos, os encontros atormentados com Silvana e os sonhos carregados de culpa... tudo muito vago, desagradável, que o empurrava para um futuro sem novidades. Aos sessenta e seis anos, costumava contar para os colegas do bar que dispunha de mais quatro anos de vida, Depois disso, digam-me, por favor, digam-me, o que poderei fazer para construir alguma coisa de consistente?...
Sua única certeza, dia após dia, era o escritório em que trabalhava oito horas por dia, juntamente com aqueles seis outros vendedores, à espera das oportunidades para vender. E cumprir, então, a função que mais odiava, olhar o cliente diretamente nos olhos e utilizar todos os argumentos de sedução para ludibriá-los, para convencê-los do que necessitavam e atulhar-lhes de cosméticos, prometendo uma vida mais bela, mais sadia... Suas mentiras eram recicladas de tempos em tempos nas palestras de vendas ou, mais a miúde, nas reuniões de pauta, quando o chefe supremo convocava os chefetes e os vendedores de ocasião, para atirar-lhes nas fuças as novas metas mensais. E dessas reuniões o nosso Vendedor saía ainda mais fragilizado, mais distante dos prazeres que acalentava de maneira quase proibitiva, vilipendiado com o discurso incisivo que só fazia azeitar a máquina de moer a carne e o espírito...
Naquela noite, quando encontrou o amigo Batista, comentou-lhe sobre esse circuito infernal, sobre as contradições de seu destino, Em algum momento errei a escolha e tomei um atalho que me permite divisar, o tempo todo, o acerto que seria o outro caminho... O amigo Batista o ouviu quieto, pagou-lhe a bebida e despediram-se. Não pôde ou não quis esclarecer nada, talvez fosse melhor guardar o silêncio e as melhores palavras, afinal, tratava-se sem dúvida de um astuto vendedor, em outro ramo, é verdade, mas um astuto e bem-sucedido vendedor.
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