ê, êo, vida de gado
povo marcado, ê
povo feliz
(Zé Ramalho)
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O professor de filosofia José Habermas chegou certa noite das aulas, deixou o calhamaço de papéis sobre o sofá e dirigiu-se lentamente para a esposa, que o aguardava como de costume diante da mesa se jantar.
- Está bem, eles venceram, a partir de amanhã eu vou me adaptar... - comentou pausadamente, sem alterar a modulação da voz.
Rigoberta Mendes conhecia bem o marido para entender que ali se processava algo grave. Nem sério, tampouco diferente, mas grave, que envolveria coisas pouco conhecidas por Habermas.
- Você está bem?
- Muito bem, minha querida... apenas preciso me adaptar... - e olhando fixamente para a esposa - talvez seja bom para nosso convívio familiar...
Os meninos já estavam na cama, os três, Leocádio, Leoberto e Lourival, pequenos meninos com nomes tão incomuns, fatigados de tanto brincar. Rigoberta aceitou o comentário do marido e dividiu o jantar, frango com batatas texanas e um pouco de arroz, e foram para a cama, exaustos.
Três noites passadas e Rigoberta resolveu saber do comentário daquela noite. Habermas deixou o livro sobre a mesinha e com um sorriso se aproximou da esposa, tocando-a generosamente, primeiro retirando parcialmente as cobertas, depois os beijos no pescoço, descendo pelo corpo cada vez mais sedento, os mamilos, o umbigo, o clitóris... Habermas não teve pressa nas carícias plenas que Mendes adorava, e por fim, a penetração, doucement, como em poucas vezes. Ao final, permaneceram abraçados, unidos por um prazer infinito e uma satisfação que abandonava todas as obrigações da manhã que se aproximava.
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Outros dias se passaram, e foram os meninos que perceberam a mudança: o pai resolveu assistir com eles a programação da tevê, a novela das seis, o jornal da noite, a novela das nove, os filminhos de ocasião, o jornal das onze, e por fim a cama. Mas não só isso, nos finais de semana, a programação incluía Hulk, Faustão, futebol, Fantástico, e tudo visto com todo o prazer possível. Ao tempo em que a família uniu-se em torno da televisão, algo era igualmente percebido pelo menor, Leocádio: a ausência de conversa à mesa.
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José conduziu a aceitação ao entretenimento eletrônico, mais para além de um estudo sociológico, como uma oportunidade para mostrar, em algum momento, que as mazelas da alienação eram tão sutís, que antes da crítica, despertava a sedução morna e cativa da imbecilização. Mais tarde foi Leoberto, o do meio e depois Lourival, o mais velho, à beira da adolescência, que sentiram o baque do silêncio. Mas incorporaram a proposta do pai, passaram a contar o que sobrou, o mais importante era que estavam juntos e absorvidos diante da tevê.
Passaram longas temporadas juntos, de tal modo que Habermas deixou a prática da leitura de modo definitivo, levando para seus alunos as impressões vagas e muitas vezes aborrecedoras de certas passagens televisivas. Rigoberta ganhou um marido apascentado, que via nos mais atoleimantes programas, um viés interessante para se apreciar. No início sentiu que perdia o homem irreverente com quem se casara, mas aos poucos, entrando na onda, não mais se incomodou com o fato. Compraziam-se cada vez mais com os sonhos de melhores tempos idos...
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Igualmente os meninos, que de tevê estenderam seus tempos para diante dos jogos eletrônicos e da internet. A prática da realidade cotidiana distanciou-se do frescor dos pequenos detalhes, produzidos pelos encontros inesperados; passaram a se deixar levar pela condução hegemônica e pelo entretenimento frugal e fugaz, de poderosa sedução alienante...
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E viveram os anos, cada vez mais unidos e integrados pela agenda eletrônica. A verdade, para Habermas, tornou-se um processo a se desvendar capítulo a capítulo nas representações de cada telenovela. O mundo ganhou a dimensão do olhar de Bonner e Fátima, ou de Waak e Pelajo, de tal modo que nada despertaria senão um supérfluo entendimento blasé... Os meninos, pobres meninos, se aproximaram das pessoas distanciando-se das percepções imaginosas e criativas que em algum momento ameaçaram brotar...
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Tudo ficou, naquela família como em tantas outras, com a sensação de permanente fascínio a se completar, e isso no final das contas não fez diferença. Sucumbiram ao parvo, ao dócil, ao boçal e inodoro. Até o amor, delicado e sublime, passou a sentir a ferrugem de comer. E o mundo prosseguiu oferecendo os fatos, absorvidos de maneira uníssona como mero espetáculo, no mais das vezes indistinto... infelizes para sempre.
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