14 março 2010

Agora, sob a garoa



Mais uns poucos minutos e Paulo Arcanjo estará diante de sua mesa de trabalho. O engarrafamento o impede de atravessar a cidade e chegar no horário. Isso não é problema, Paulo é o chefe do estabelecimento, um pequeno escritório de contabilidade. O serviço à mingua, em razão da concorrência acirrada do setor, cada vez mais novas empresas estrangeiras, mais equipadas, a oferecer auditorias com eficiência profissional. Pelo celular fala com Sueli, dizendo-lhe que está a caminho. Esperou o sinal vermelho para ter mais tempo com a ligação e ao final, ao contrário do que costuma fazer, não desligou. Prosseguiu na linha para auscultar a respiração descompassada do outro lado da linha. Por fim, surge o Está bem, senhor Paulo

Quantas vezes pediu para que ela dispensasse as formalidades... Sueli, porém, insistia, no intuito de resguardar-se na derradeira barricada, resistindo ao canalha que ela bem conhecia. Que tal fazermos isso, senhor Paulo?... Vou sair para almoçar, senhor Paulo... O senhor deve estar feliz, seu time ganhou ontem!... Telefone para o senhor... e assim se passavam os dias, as semanas, um convívio muito próximo, num ambiente cada vez mais exíguo. A improdutividade da pequena empresa impeliu Paulo Arcanjo a reduzir custos e a última decisão foi se mudar para um escritório mais acanhado, em um bairro mais afastado. De treze empregados fixos, agora só ele e ela, mais dois advogados, dois estagiários... Quatro mesas, algumas cadeiras, duas linhas telefônicas, um computador, o relógio de parede a indicar a passagem mórbida das horas, papéis estocados nas prateleiras, nos cofres, esparramados sobre as mesas... E a presença frente a frente, uma jornada inteira com a jovem Sueli. Faz todo o esforço para arranjar clientes e resistir à tentação daquela conquista proibida.

Sueli casara-se com o filho de um velho amigo seu, a pele alva e fresca, um jeito paciente... Ele, um conquistador inveterado, três vezes casado, duas filhas - uma das quais com mais idade que Sueli - duas falências, negócios atribulados, incompetências sem fim... Agora, a prova de fogo: resistir à garota que se acerca a cada dia, vinte anos mais jovem. Arcanjo conseguiu estacionar quase em frente ao prédio do escritório. Veste o sobretudo cinza-escuro de outono, presente de Wanda, um dos amores garimpados em loucuras passadas. Olha para a janela envidraçada do seu andar. Recomeçam os pensamentos que o atormentam de modo implacável, o crescente desejo a pronunciar-se como em todas as manhãs. Sentaria em sua cadeira, assinaria documentos, leria relatórios, atenderia os telefonemas, iria até a minúscula copa e faria o café, buscando observá-la livremente, de um ângulo que a deixasse mais atraente... Ludibriariam-se, num esconde-esconde de olhares fortuitos, prevalecendo até o final do expediente o tom formal das expressões.

Diante do prédio, Paulo Arcanjo espera um pouco mais, sob a fina garoa, em um dia mais circunspecto que os anteriores. Perdeu a pressa. Persiste em seu olhar dissimulado para o terceiro andar, na esperança de que Sueli abra a janela e o acolha com um gesto de bom dia. Seria um jeito promissor de darem início a mais um capítulo de encenações. Avaliou ainda uma vez as possibilidades, antes de caminhar até a banca da esquina e comprar seu jornal.


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