02 março 2010

Sobre o que restou

Dresden, 2010

A maior angústia sentida não é a que me atormenta ao longo das jornadas de solidão e desânimo, mas a que apreendi certo dia em seus olhos e que não mais se desfez. Nesse dia observei bem seu olhar e denotei o tormento, uma certa convicção de que o melhor de todos os desejos estava condenado. Detive-me por uma fração de segundo em que o mundo ao redor – incluindo você – se deu conta. Pedi licença e me dirigi para o balcão, em busca de nossos cafés fumegantes e retornei à mesa, já sob o domínio de uma sensação indesejável. Eu poderia dizer a doce aflição, pois continuamos a conversar, a sorrir, a combinar os planos para o futuro e em certo sentido os realizamos... Sua expressão denotava a sensualidade de sempre, mas minha apreensão não mais me abandonou. Seu sorriso e sua ternura converteram-se num fosso de dor, absorvendo os desejos mais escandidos. Eu sorvia o café e decifrava cada palavra em seus lábios, foi quando sua alegria agônica me tomou, levando-me a pensar, ‘Que cumplicidade podemos desfrutar?’. E a frase não mais me abandonou.

Um estalo cruel, proveniente do mais insidioso dos infernos. Seus olhos me buscavam, tentando deslindar os efeitos do meu carinho complacente. Quando me levantei para buscar outro café, na verdade buscava um tempo para avaliar minha impotência. Você deve ter percebido, mas prosseguiu com seu delicado sorriso, que apenas fez cristalizar a desdita de nossos esforços. Eu movia a colherzinha no café sem açúcar, a estender o tempo inebriante, esse esforço me falecia a alma. Minha imobilidade transitava em outra dimensão, o gesto de suas mãos tomando as minhas reanimou-me. Olhamo-nos ternamente. Eis a angústia mais profunda, que pouco a pouco me envolveu. Estendi a mão para acariciar-lhe os longos cabelos revoltosos. Seu sorriso aprofundou a certeza de que desejava afugentar a mísera placidez do momento. Foram seus olhos que descreveram a súplica embargada, a beleza extemporânea de uma flor condenada pelo medo, pelo anseio em se mostrar viva. Acarinhei-a o quanto pude, sentindo as vibrações de sua luta íntima por fender a teia da negação, que uma vez mais se projetava para nos alertar. Eu só pude compreender a extensão desse sofrimento anos depois, quando tudo já se transformara e o coração já não podia mais se sensibilizar com as cores vivas do desejo.

Se há um martírio, ele não se ameniza com este relato. Quero que entendam que não sofro pela dor física, mas pela convicção da incompletude. Não ignoro mais nada, que vivemos o que foi possível viver, que construímos um belo projeto. O amor transmutou-se, da angústia vivenciada naquele longínquo dia para um solfejo sereno que brota a cada rememoração. Das agruras juvenis, resta o sabor da turbulência vivida em sua plenitude e que agora é testemunha de minha desventura. Se há algum consolo nessa inquietação residual, ele está na comprovação do amor sublimado, cuja força persiste para além das provações materiais que a vida possa oferecer...


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