13 março 2010

Sobre rebanhos


Foi em um tempo de liberalismo avançado. Como diria Simmel, o mundo reduzido a um problema aritmético, onde as corporações estabeleciam seus marcos regulatórios no infinito, em detrimento do estado social. Foi nesse tempo, em meio a privatizações, licitações, terceirizações, que o cidadão Sebastião Pereira Lupino, 53 anos, desempregado, foi agraciado de maneira absolutamente aleatória com uma ponte, tornando-se responsável pelo seu, digamos, gerenciamento.
Na segunda semana após o decreto, viu-se na obrigação de tirar os filhos da escola (para ajudar na manutenção); na quarta semana vendeu o automóvel (um Fiat 95); na quinta, entronizou a família a uma dieta a base de nabos e soja; na sétima, suspendeu todos os pagamentos e deixou de comprar produtos de higiene. Foi aí que sua mulher estrilou, Daqui a pouco esta casa estará parecendo uma caverna!, encarando furiosa o marido fétido e barbado. Mas nada o abalou em seu novo papel social, Sabes muito bem que temos de cumprir nossos compromissos com o alcaide, suspirou o Sebastião, sem conhecer os meandros do choque de gestão apresentados pela sevandija do chefe municipal. De mais a mais, esta nossa situação é passageira... e não conseguiu concluir a sentença, atingido pela última lata de sardinhas pela mulher.
Ao fim do sexto mês desempregado, o Sebastião não tinha tempo senão para responder a cartas de contribuintes irados, ao longo do dia, e de cuidar vigilância da ponte pela madrugada. Nem o corte da energia elétrica, nem o abandono da mulher (Você acabará como seu irmão, juntando ossos num frigorífico...) foram motivos suficientes para modificar sua maneira de pensar. Antes de completar um ano de administração, rastejava pelas ruas da cidade, coberto de andrajos, invariavelmente com uma garrafa de aguardente na mão, desconfiado, abandonado. Os poucos amigos acabaram por se afastar e tinha a polícia em seu encalço, sua foto distribuída pelo bairro, Procura-se o administrador da ponte B... e mais abaixo, o valor da recompensa.
E perambulou pelos botecos, consumindo-se de trago em trago, até o dia em que o proprietário o escorraçou, Chega de beber de graça, seu porco imundo... Afastou-se saboreando imaginariamente um naco do que deveria ser um porco recheado... O último local em que encontrou guarida foi na Congregação dos Lobos Cinzentos. Estava justamente em um boteco, afogando seus infortúnios com um copo de Tatuzinho, quando reparou em uma escada, do outro lado da rua, a faixa que indicava a congregação, a face do lobo desenhado e a seta com os dizeres, Suba e torne-se um irmão-lobo.
O resto é história. O Sebastião não só subiu e tornou-se o mais novo irmão-lobo, como também em pouco tempo, por sua aplicação e estilo voraz, num exemplar lobo-pegureiro. Após o que se denominava procedimentos de organização da matilha, tempo necessário para colocar-se a par dos ensinamentos sobre a justiça implacável pertinente a um verdadeiro lobo cinzento, ele foi incumbido de tocar um templo na periferia. Seus ensinamentos foram responsáveis pela multiplicação de fiéis cordeiros pelo bairro e mais tarde, por toda a cidade. Com o hit Louvado seja o Lobo Cinzento e seu jeito descontraído no palco, carreou multidões crescentes aos rituais sagrados, sendo merecedor da homenagem que o alcaide por fim lhe prestou ao resgatar-lhe a ponte de volta para a administração pública e batizá-la de Grão Lobo Sebastião Lupino.

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