20 abril 2009

Tormenta



"(...) Como me sai mal o canto
quando tenho que cantar o espanto!
Espanto como o que vivo
como o que morro, espanto.
De ver-me entre tantos e tantos
momentos do infinito
em que o silêncio e o grito
são as metas deste canto.
O que vejo nunca vi,
O que tenho sentido e o que sinto
Fará brotar o momento...”
(Victor Jara)

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Esteban,
.
Algo ocorre: não há mais como deitar e dormir serenamente, com o desejo de repousar o corpo demolido. As dores voltam a colocar-me sob essa luz enjoada e tão segura que vem do abajur. Já não consigo me anestesiar com a leitura, já não me é mais suportável aguardar os fatos, então aproveito a mesma luz enjoada para lhe redigir esta carta. Penso qual seria a razão para o medo me calar, o que tenho a perder? Olho-o, seu ronco me invade. Posso continuar escrevendo aqui a noite toda e você nem perceberá. Seu próximo movimento consciente deve ocorrer por volta das seis da manhã, antes de ir para o trabalho, quando estenderá o braço, buscando-me. Até a semana passada eu era despertada por seu avanço truculento, como esses tanques que surgem de todas as partes. Antes desse estado de coisas nunca me dera conta de que tudo era meticulosamente cronometrado: esse roçar involuntário, depois o movimento mais decidido, o seu desejo crispado em tua aspereza, o gozo como conclusão formal, como em tantos quartos e em tantas manhãs chilenas. Agora tenho notado que o gesto cronometrado torna-se grosseiro, porque imprescindível para vocês, digo vocês de farda, vocês golpistas de última hora, aliviar as tensões, marcar o território e, claro, esmagar suas presas. Torno-me dia após dia na tua mais bem acabada presa, ou direi vítima? Aí você se levanta, veste-se enquanto, compõe-se aos poucos no ser superior que alguém lhe disse ser, e com o uniforme impecável, afasta-se. Ao chegar à cozinha, tem o café da manhã preparado e minhas breves palavras para lhe confortar, para que entenda subliminarmente que estarei quando do seu regresso, não importa se com as mãos sujas de sangue. Stark, o nosso viralatas, é o único a não notar qualquer diferença. Vê-lo em seu uniforme de oficial carabineiro poderia me dar ganas de esperá-lo ansiosamente, para uma nova chance à noite, um carinho perdido entre relatórios, ou uma transa rude, menos maquinal que pela manhã... Mas, não consigo! O flagelo como argumento me despedaça, ou o contrário, me forja em aço, não sei bem... O que sei é que não me sobra mais nenhum sentimento... vazio... oco... é bom que saiba. Torno-me dia após dia numa refém de um estado de sítio, sem pensar nos dias vindouros, paralisada em meu caminhar de um cômodo ao outro. Finjo ouvir as notícias e pensar que tudo está bem. Finjo acreditar nos sorrisos de bom-dia de nossos vizinhos assustados. Depois que meu trabalho na biblioteca nacional foi suspenso por ordens superiores, comecei a ter mais tempo para pensar, que perigo, não é mesmo? Tenho mais tempo não para ler, não para escrever, mas para pensar: sento-me dia após dia e penso nesse turbilhão de loucura que nos envolve e me agride. Imagino qual seja o esforço que despende em zelar pela ordem e bem-estar de nosso país. E assim tem sido, e posso dizer, Esteban, se deseja ainda me ouvir, você também está apavorado! Como sei disso? Em seu sono profundo, não cansa de pronunciar palavras de dor e de morte, entremeadas por um mal-cheiro incriminador exalado de suas entranhas. Primeiro balbucios ansiosos que se fazem ríspidos, seguidos por ameaças e então golpes manifestados por gestos brutos, inconclusos, degenerados... Palavras atropeladas, frases coercitivas, ao cabo de semanas ouvindo-o percebo a natureza pustulenta de sua função. E percebo a sutileza de sua existência ambígua, nestes meses posteriores ao golpe. Seu único momento de autenticidade, ao longo desse tempo, ocorre quando vocifera com os prisioneiros, nas catacumbas de seus pesadelos. Você teme seus prisioneiros, Esteban, por isso a cada noite as mesmas ordens, as mesmas ameaças aventadas, ferindo-me à semelhança dos que você fere em suas jornadas extorsivas...

Concluo que não posso mais representar um papel de cúmplice nessa tragédia. Não tenho mais como reconhecer o homem que perpetra carícias como se forjasse um álibi moral. Pela manhã, ao ler esta carta, você se dará conta de que a única maneira de me rever será no seu local de trabalho, no subsolo das confissões, como uma prisioneira de consciência. E é bom que saiba de uma coisa, não terei nada a lhe dizer.

Matilde.



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