27 abril 2009

Tanger



Quando tomei o táxi na estação de trem, indiquei o meu destino e comentei com o chofer que conhecia a cidade, procurando de saída evitar que se perdesse ao longo do percurso. Ao avançar pelos três quilômetros que me separavam do Hotel Djenina, nos enredamos no tráfego moroso de qualquer grande metrópole. Já próximos do hotel, ele me perguntou se estávamos no caminho certo, ao que lhe respondi, “Sim, estamos próximos...”, com a pretensa autoridade de quem conhecia o trajeto.

Desta feita não resisti e adentrei a atulhada medina. Em um ou outro momento, um pedinte se aproxima abordando o estrangeiro. Não se trata do mesmo assédio que da última vez que aqui estive, quando era complicado sair às ruas para um passeio. Ocorre que naquela ocasião chegara em junho, antes da temporada de verão. Havia poucos turistas ou viajantes circulando nas ruas e a presença de um único provocava balbúrdia entre os jovens, que concorriam entre si oferecendo-se como guias.


Apagaram-se as mais nítidas lembranças não só do Djenina, mas da cidade. Eram poucas as reminiscências que de ora em vez afloravam: a visão do casario tomada dos fundos do hotel, a estação ferroviária, a praia ao longo da avenida Espanha, alguma coisa da parte alta da cidade, o desenho da avenida Pasteur, a ampla avenida Mohamed V... Mesmo assim Tanger me pareceu familiar, talvez um pouco pela presença de Paul Bowles, ou de seus personagens, que para mim seguiam caminhando pelas ruas e vielas da cidade, entrando e saindo de bares, encontrando-se nos apartamentos, escritórios, levando o peso de suas existências. Em seus textos Bowles costumava referir-se a uma Tanger internacional, que hoje não existe mais. Um de seus trágicos personagens, Nelson Dear em Que venha a tempestade, se hospeda a certa altura do romance em um hotel na avenida Espanha, a poucas quadras do Djenina, envolto em seus despropósitos, circulando pelos meandros da cidade, até vislumbrar a pior das rupturas para o seu marasmo...


Restaram poucas reminiscências dessa época, seja em sua arquitetura, em seu plano urbanístico ou da quantidade de moradores estrangeiros. A presença europeia se esfumou, dando lugar a uma realidade mais híbrida, a formosa mistura entre ibéricos e berberes. Suas ruas mostram-se atulhadas de automóveis, mas a sagração da cultura islâmica persiste em cada quarteirão. Suas periferias são tão miseráveis quanto qualquer metrópole do falido terceiro mundo e seus jovens desejam inserir-se no mercado global com a mesma ânsia de qualquer jovem latino-americano, o que obviamente não é garantia de nada. Tal como Dear, mergulhei na sinuosidade de seu soco atulhado de tendas e camelôs, subi por suas vielas e de alguma forma saí na avenida Pasteur, na parte alta da cidade, onde os europeus faziam seus negócios e tomavam seus cafés. A vida se agita e se embaralha sem predominâncias, convivendo ricos com pobres, mulheres com hijabs e com calças jeans, jovens irrequietos com velhos observantes, tudo envolto em olores de distintas especiarias, panorama abrupto e ao mesmo tempo recôndito que imprime uma personalidade única à cidade.


Essa mistura tão característica referenda sua posição estratégica, na entrada do Mediterrâneo, a duas horas de ferry da Europa, a cinco horas de trem dos centros mais tradicionais como Meknés e Fez, fazendo com que Tanger prossiga desfrutando de um cosmopolitismo especial, que não se encontra mesmo em Casablanca ou Marraqueche. Essa palavra, cosmopolita, exprime bem o sentido da cidade: expõe as fraturas como sendo as nuances de um mosaico, abraçando modos de ser sem impor hierarquias. Bem ou mal, Tanger persiste como um ambiente urbano de permanente sedução, onde nada escapa à sucessão de múltiplas interpretações.



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