10 abril 2009

Sobre coisas muito próximas




Há uma fala, em um desses filmes norte-americanos de presídio, bastante sintomática do tempo presente, em que numa conversa entre detentos, um deles (não me lembro se Morgan Freeman), explica como foi parar ali: “O cara entrou no mesmo bar que eu estava, esse foi seu primeiro erro... resolveu me provocar, esse foi seu segundo erro... aí sacou a faca, esse foi seu último erro...".

Nunca estivemos com tantas ferramentas para mudar o mundo, e igualmente nunca estivemos tão desinteressados. Preferimos sucumbir ao mecanicismo do ganhar o pão de cada dia, ao caráter flexível da vida moderna que nos torna um alvo fixo, à espera dos acontecimentos. Quando muito, elegemos o vizinho ou o colega da mesa ao lado para transformá-los em bodes expiatórios de nossas frustrações.

Ao se cogitar a expressão ambígua moral do mercado, entende-se o esforço de sedução balizado pela volúpia das intenções mercadológicas e pela renovação tecnológica. A sociedade dos indivíduos sucumbe a esta ação incessante dos conglomerados e evolui para a inconstância do caráter, buscando repor uma falta dispensável. Essa busca muitas vezes se confunde com a deriva em um centro de compras, com os desejos mobilizados para as aquisições transitórias, voltados para o próximo objeto de consumo a ser ambicionado.


De algum modo, as pessoas abandonaram há muito o desejo das conquistas substanciosas, que as liberem da comiseração. Despedem-se aos bocados do prazer de criar, condição básica para uma verdadeira transformação, aprofundando a capacidade de reprodução de idéias. Tornamo-nos reféns de nossa crescente incompetência em desvelar o mundo. Os movimentos genuínos, o respeito à inteligência alheia, a camaradagem no espaço público, a competição ética no espaço profissional, tudo esboroa diante da tenebrosa tendência em ter, acumular, prevalecer, eliminar. 


A moral do mercado permite e estimula as ações de esforço programado, bastando que paguemos para a felicidade ficar ao alcance. Se não for alcançada, ora, você é o culpado. Uma vez isolados, mordemos qualquer isca. Seremos felizes, fragilizados; teremos o que desejamos e sempre nos dirão que falta algo. É a ambiguidade moderna, pois como diz Sennett, se não temos mais tempo para nos dedicarmos às relações duradouras, elas são insistentemente oferecidas como a solução para nossas aflições.

Definitivamente não há mais utopias coletivas, e os sonhos individuais tornam-se vulgares. A beleza da vida perde seu lugar para os movimentos comezinhos: se possuo, é o que me basta para que os outros me vejam como bem-sucedido; se posso consumir, é o suficiente para que eu me sinta bem. No mais, passo a compreender cada vez mais a ideologia do isolamento, da segurança entre iguais, da segregação porque a violência urbana pode me atingir... Sigo refém da minha incompetência em desvelar o mundo, em vias de temer minha própria sombra. De vez em quando uma ousadia tolerada, um porre com os amigos, um banho de cachoeira, um fim de semana em um resort, ou um pouco mais além, uns dias com o Pateta na Disneylândia...

Nesse ponto, retorno à situação descrita no início. Há um registro simbólico na fala do detento, que reflete o espírito desta pós-modernidade: com seu jeito de enfado, o personagem desenvolve com fria naturalidade a narrativa elíptica. Descreve seu crime como se descrevesse alguém almoçando em um restaurante qualquer, entre garfadas e goles de vinho. A indiferença como resultante do vazio de propósitos, do distanciamento em relação ao outro, um discurso que caracteriza a essência desse tempo presente que vivemos. O insólito perde as cores, torna-se um ato banal, igual a qualquer gesto desperdiçado. Uma perda a qual nos condenamos, a nossa facticidade reduzida a uma entusiasmante experiência bovina.


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