As lembranças da senhora Hutner estimulam delicadamente sua razão de existir. Quando jovem, desejava logo que possível retornar a sua terra, junto a seus pais. A vida pregou-lhe uma peça e a reteve em paragens longínquas, de tal modo que acompanhou, à distância, a morte do pai, depois da mãe, como também do senhor Stênio e de dona Marta, os padrinhos. Procurou manter a esperança de um dia retornar, nem que fosse apenas para se banhar no pequeno regato, nos fundos da velha casa.
A senhora Hutner agora vive com o senhor Hutner uma vida sem percalços, bastante frugal em seu cotidiano. Consegue saber dos irmãos e dos sobrinhos, um ou outro primo, mas por alguma razão eles permanecem longe do calor de um abraço demorado, ou de uma boa conversa na varanda, ao cair da tarde. Para o senhor Hutner, a memória é paulatinamente subtraída com o suave passar dos anos, de modo que não desconfia das tramas alimentadas por sua esposa. Para a senhora Hutner, o passado não só é presente, como atuante, sendo possível a cada dia torná-lo uma pequena surpresa, em reverberações inesperadas. É outono, a cada manhã, ela dirige-se à sala de estar e ao olhar para o quintal gramado, depara com uma cena distinta. Na última, acompanhou seus pais caminhando juntos, de mãos dadas, prestes a abrir o portãozinho para entrar.
Aos poucos, os parentes mais queridos, o padre da comarca, o açougueiro da esquina, o carteiro portador das novidades, a mulher dos bordados, a primeira professora, as crianças do quarteirão, as amigas do colégio, os homens desejados, ou mesmo os rostos curiosos que apenas passaram e ficaram marcados, todos representam situações prosaicamente imaginadas, que são apreendidas através das amplas vidraças. Ao espreitarmos seu sorriso e entrevê-la em meio a suas reminiscências, presumimos a senhora Hutner feliz.
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