28 abril 2009

Milton Santos


"(...) Nós decidimos ser europeus e americanos e nos recusamos a pensar como nós próprios, porque achamos mais chique pensar como eles, e aí temos uma enorme dificuldade para entender o mundo e essa dificuldade nos deixa atarantados, meio tolos, diante da história que está se fazendo. Daí que a própria política da gente fica perdida, porque não sabemos o que fazer com o mundo novo, porque não descobrimos as formas de pensar esse mundo novo a partir de nós próprios (...)"

in O mundo global visto do lado de cá


27 abril 2009

Tanger



Quando tomei o táxi na estação de trem, indiquei o meu destino e comentei com o chofer que conhecia a cidade, procurando de saída evitar que se perdesse ao longo do percurso. Ao avançar pelos três quilômetros que me separavam do Hotel Djenina, nos enredamos no tráfego moroso de qualquer grande metrópole. Já próximos do hotel, ele me perguntou se estávamos no caminho certo, ao que lhe respondi, “Sim, estamos próximos...”, com a pretensa autoridade de quem conhecia o trajeto.

Desta feita não resisti e adentrei a atulhada medina. Em um ou outro momento, um pedinte se aproxima abordando o estrangeiro. Não se trata do mesmo assédio que da última vez que aqui estive, quando era complicado sair às ruas para um passeio. Ocorre que naquela ocasião chegara em junho, antes da temporada de verão. Havia poucos turistas ou viajantes circulando nas ruas e a presença de um único provocava balbúrdia entre os jovens, que concorriam entre si oferecendo-se como guias.


Apagaram-se as mais nítidas lembranças não só do Djenina, mas da cidade. Eram poucas as reminiscências que de ora em vez afloravam: a visão do casario tomada dos fundos do hotel, a estação ferroviária, a praia ao longo da avenida Espanha, alguma coisa da parte alta da cidade, o desenho da avenida Pasteur, a ampla avenida Mohamed V... Mesmo assim Tanger me pareceu familiar, talvez um pouco pela presença de Paul Bowles, ou de seus personagens, que para mim seguiam caminhando pelas ruas e vielas da cidade, entrando e saindo de bares, encontrando-se nos apartamentos, escritórios, levando o peso de suas existências. Em seus textos Bowles costumava referir-se a uma Tanger internacional, que hoje não existe mais. Um de seus trágicos personagens, Nelson Dear em Que venha a tempestade, se hospeda a certa altura do romance em um hotel na avenida Espanha, a poucas quadras do Djenina, envolto em seus despropósitos, circulando pelos meandros da cidade, até vislumbrar a pior das rupturas para o seu marasmo...


Restaram poucas reminiscências dessa época, seja em sua arquitetura, em seu plano urbanístico ou da quantidade de moradores estrangeiros. A presença europeia se esfumou, dando lugar a uma realidade mais híbrida, a formosa mistura entre ibéricos e berberes. Suas ruas mostram-se atulhadas de automóveis, mas a sagração da cultura islâmica persiste em cada quarteirão. Suas periferias são tão miseráveis quanto qualquer metrópole do falido terceiro mundo e seus jovens desejam inserir-se no mercado global com a mesma ânsia de qualquer jovem latino-americano, o que obviamente não é garantia de nada. Tal como Dear, mergulhei na sinuosidade de seu soco atulhado de tendas e camelôs, subi por suas vielas e de alguma forma saí na avenida Pasteur, na parte alta da cidade, onde os europeus faziam seus negócios e tomavam seus cafés. A vida se agita e se embaralha sem predominâncias, convivendo ricos com pobres, mulheres com hijabs e com calças jeans, jovens irrequietos com velhos observantes, tudo envolto em olores de distintas especiarias, panorama abrupto e ao mesmo tempo recôndito que imprime uma personalidade única à cidade.


Essa mistura tão característica referenda sua posição estratégica, na entrada do Mediterrâneo, a duas horas de ferry da Europa, a cinco horas de trem dos centros mais tradicionais como Meknés e Fez, fazendo com que Tanger prossiga desfrutando de um cosmopolitismo especial, que não se encontra mesmo em Casablanca ou Marraqueche. Essa palavra, cosmopolita, exprime bem o sentido da cidade: expõe as fraturas como sendo as nuances de um mosaico, abraçando modos de ser sem impor hierarquias. Bem ou mal, Tanger persiste como um ambiente urbano de permanente sedução, onde nada escapa à sucessão de múltiplas interpretações.



20 abril 2009

Tormenta



"(...) Como me sai mal o canto
quando tenho que cantar o espanto!
Espanto como o que vivo
como o que morro, espanto.
De ver-me entre tantos e tantos
momentos do infinito
em que o silêncio e o grito
são as metas deste canto.
O que vejo nunca vi,
O que tenho sentido e o que sinto
Fará brotar o momento...”
(Victor Jara)

.
Esteban,
.
Algo ocorre: não há mais como deitar e dormir serenamente, com o desejo de repousar o corpo demolido. As dores voltam a colocar-me sob essa luz enjoada e tão segura que vem do abajur. Já não consigo me anestesiar com a leitura, já não me é mais suportável aguardar os fatos, então aproveito a mesma luz enjoada para lhe redigir esta carta. Penso qual seria a razão para o medo me calar, o que tenho a perder? Olho-o, seu ronco me invade. Posso continuar escrevendo aqui a noite toda e você nem perceberá. Seu próximo movimento consciente deve ocorrer por volta das seis da manhã, antes de ir para o trabalho, quando estenderá o braço, buscando-me. Até a semana passada eu era despertada por seu avanço truculento, como esses tanques que surgem de todas as partes. Antes desse estado de coisas nunca me dera conta de que tudo era meticulosamente cronometrado: esse roçar involuntário, depois o movimento mais decidido, o seu desejo crispado em tua aspereza, o gozo como conclusão formal, como em tantos quartos e em tantas manhãs chilenas. Agora tenho notado que o gesto cronometrado torna-se grosseiro, porque imprescindível para vocês, digo vocês de farda, vocês golpistas de última hora, aliviar as tensões, marcar o território e, claro, esmagar suas presas. Torno-me dia após dia na tua mais bem acabada presa, ou direi vítima? Aí você se levanta, veste-se enquanto, compõe-se aos poucos no ser superior que alguém lhe disse ser, e com o uniforme impecável, afasta-se. Ao chegar à cozinha, tem o café da manhã preparado e minhas breves palavras para lhe confortar, para que entenda subliminarmente que estarei quando do seu regresso, não importa se com as mãos sujas de sangue. Stark, o nosso viralatas, é o único a não notar qualquer diferença. Vê-lo em seu uniforme de oficial carabineiro poderia me dar ganas de esperá-lo ansiosamente, para uma nova chance à noite, um carinho perdido entre relatórios, ou uma transa rude, menos maquinal que pela manhã... Mas, não consigo! O flagelo como argumento me despedaça, ou o contrário, me forja em aço, não sei bem... O que sei é que não me sobra mais nenhum sentimento... vazio... oco... é bom que saiba. Torno-me dia após dia numa refém de um estado de sítio, sem pensar nos dias vindouros, paralisada em meu caminhar de um cômodo ao outro. Finjo ouvir as notícias e pensar que tudo está bem. Finjo acreditar nos sorrisos de bom-dia de nossos vizinhos assustados. Depois que meu trabalho na biblioteca nacional foi suspenso por ordens superiores, comecei a ter mais tempo para pensar, que perigo, não é mesmo? Tenho mais tempo não para ler, não para escrever, mas para pensar: sento-me dia após dia e penso nesse turbilhão de loucura que nos envolve e me agride. Imagino qual seja o esforço que despende em zelar pela ordem e bem-estar de nosso país. E assim tem sido, e posso dizer, Esteban, se deseja ainda me ouvir, você também está apavorado! Como sei disso? Em seu sono profundo, não cansa de pronunciar palavras de dor e de morte, entremeadas por um mal-cheiro incriminador exalado de suas entranhas. Primeiro balbucios ansiosos que se fazem ríspidos, seguidos por ameaças e então golpes manifestados por gestos brutos, inconclusos, degenerados... Palavras atropeladas, frases coercitivas, ao cabo de semanas ouvindo-o percebo a natureza pustulenta de sua função. E percebo a sutileza de sua existência ambígua, nestes meses posteriores ao golpe. Seu único momento de autenticidade, ao longo desse tempo, ocorre quando vocifera com os prisioneiros, nas catacumbas de seus pesadelos. Você teme seus prisioneiros, Esteban, por isso a cada noite as mesmas ordens, as mesmas ameaças aventadas, ferindo-me à semelhança dos que você fere em suas jornadas extorsivas...

Concluo que não posso mais representar um papel de cúmplice nessa tragédia. Não tenho mais como reconhecer o homem que perpetra carícias como se forjasse um álibi moral. Pela manhã, ao ler esta carta, você se dará conta de que a única maneira de me rever será no seu local de trabalho, no subsolo das confissões, como uma prisioneira de consciência. E é bom que saiba de uma coisa, não terei nada a lhe dizer.

Matilde.



18 abril 2009

Sobre os Bourbons


O doloroso poder da mediocridade. Ela está aí, ao acesso de qualquer um nas bancas de jornal, nas televisões, nas salas de aula, por isso, nada de estranhamento, não é mesmo? É nesse mundo que sabemos do sucesso do choro de uma Paris Hilton, da audiência de uma Xuxa com as crianças, de noticiosos detonando a “marginalia” no espectro eletromagnético (e as renovações das licenças, não se discute isso!?). Tudo parece se resumir a essa pasta insossa, pegajosa, a razão de viver de todos. O belo não precisa encantar, ele se faz como uma referência estética inflexível e prevalece em seus contornos nórdicos, anoréxicos. A velocidade é outro aspecto padrão, que combina com a beleza na medida em que uma depende da outra para vender. Quem vende, ganha, e isso mobiliza o que se denomina mercado. É o que importa, danem-se os escrúpulos, como disse um dia um ministro militar. Bradford Marsalis, Giacometti ou Neruda nunca estiveram tão fora, não por inconveniência, mas por desconhecimento mesmo. Por isso, o jeito é saudar uma audiência de mais de 85 pontos no final de um big brother, intumescidos de batata-frita e coca-cola...

A praça ao lado prossegue vazia e desolada, perceberam? O local de encontro por excelência tornou-se um lugar abandonado ao tráfico de drogas, ou de refúgio dos miseráveis sem voz, e sabem por quê? Porque ela já não oferece segurança, e o que é pior, permite o convívio entre diferentes. A praça se condenou, mas não sua reprodução grosseira nos shoppings centers da vida. Ali, o espaço imaculado convive com sorrisos, imagens saudáveis. As pessoas sentem-se confortáveis para fazer uma única coisa: consumir, ou, atender o mercado em seus ditames mais recentes. Somos persuadidos a um carrossel sem fim, imposto por ele e seu desejo a expandir-se de modo irrefreável e infinito. Na verdade, nos soltamos às suas exigências e daí a sermos sugados, vai um nada. E nos tornamos um nada, normalmente captados por câmeras que nos controlam ou nos lançam ao fútil estrelato. Eis a sociedade do espetáculo em pleno funcionamento.


Nossa voz não está aí, em lugar nenhum. Não temos representatividade e somos condenados ao lugar-comum da miséria cotidiana. Quando a mídia surge para defender o direito à liberdade de expressão, é a sua (dela) liberdade de expressão que ela se refere. Quando perguntaram a Milton Santos sobre a democracia brasileira, ele simplesmente perguntou, de que democracia você se refere? E logo passou ao seu contundente argumento, de que apenas uma parcela ínfima da nossa população podia dizer que usufruía da democracia. Democracia como direito cidadão! Isso existe no núcleo funcional e aristocrático de cada metrópole brasileira, ilhas de prosperidade, de direitos iguais e liberdades iguais, vale dizer, todas as benesses de uma cidade global. Nas bordas dessas ilhas, a miserabilidade aguda, a cidade local, abandonada, dependente, fragilizada, sem voz. Como disse Paulo Freire, a sociedade dependente é uma sociedade semissilenciosa, suas classes dominantes não falam – refletem a voz imperial.


Em 1804 o duque d´Enghien foi julgado, condenado e fuzilado por conspirar contra o governo francês. A reação da realeza européia foi imediata, protestos vieram de todas as partes, expressando uma indignação: como tiveram a coragem de fuzilar um Bourbon? Para os nobres das cortes europeias, isso jamais poderia ter ocorrido, pela simples razão de estarem acima de qualquer suspeição. Seus atos e suas decisões não podiam ser contestados pelos comuns. E assim tem sido, os Bourbons seguem considerando-se intocáveis em pleno século XXI.


O problema continua sendo o Terceiro Estado. Abaixamos a cabeça e seguimos pelas veredas oferecidas, em vez de explorarmos as grandes alamedas da democracia, como imaginou Allende. A democracia tornou-se sinônimo de viver em paz. Como estar em paz, se a maioria vive das migalhas, nas condições de pré-revolução francesa? Negros, pobres, desempregados, este segmento social se acumula em nossas periferias, sem direito a justiça e participação social.


Em um mundo cujos acontecimentos transpõem fronteiras com tanta facilidade e em tempo real, falhamos na interpretação da massa informativa que nos é oferecida. Pagamos pela comodidade em sonhar os ideais dos Bourbons, feitos de carruagens e bailes suntuosos, quando deveríamos ousar em nossos ideais humanos. A consciência crítica sucumbe ao jargão do mercado, nossa vida deixa aos poucos de ser relevante para sobrevivermos como um produto sem alma. Ao nos satisfazermos com esse destino oferecido, o de apenas suportar o tédio, o preço tem sido pago com a nossa liberdade.


É tempo de entendermos que não interessa ser um Bourbon.



17 abril 2009

Zitarrosa



Pájaro rival


(...)
Por sanar de una herida
He gastado mi vida
Pero igual la viví
Y he llegado hasta aquí.
Por morir, por vivir,
Porque la muerte es más fuerte que yo
Canté y viví en cada copla
Sangrada querida cantada
Nacida y me fui...



10 abril 2009

Sobre coisas muito próximas




Há uma fala, em um desses filmes norte-americanos de presídio, bastante sintomática do tempo presente, em que numa conversa entre detentos, um deles (não me lembro se Morgan Freeman), explica como foi parar ali: “O cara entrou no mesmo bar que eu estava, esse foi seu primeiro erro... resolveu me provocar, esse foi seu segundo erro... aí sacou a faca, esse foi seu último erro...".

Nunca estivemos com tantas ferramentas para mudar o mundo, e igualmente nunca estivemos tão desinteressados. Preferimos sucumbir ao mecanicismo do ganhar o pão de cada dia, ao caráter flexível da vida moderna que nos torna um alvo fixo, à espera dos acontecimentos. Quando muito, elegemos o vizinho ou o colega da mesa ao lado para transformá-los em bodes expiatórios de nossas frustrações.

Ao se cogitar a expressão ambígua moral do mercado, entende-se o esforço de sedução balizado pela volúpia das intenções mercadológicas e pela renovação tecnológica. A sociedade dos indivíduos sucumbe a esta ação incessante dos conglomerados e evolui para a inconstância do caráter, buscando repor uma falta dispensável. Essa busca muitas vezes se confunde com a deriva em um centro de compras, com os desejos mobilizados para as aquisições transitórias, voltados para o próximo objeto de consumo a ser ambicionado.


De algum modo, as pessoas abandonaram há muito o desejo das conquistas substanciosas, que as liberem da comiseração. Despedem-se aos bocados do prazer de criar, condição básica para uma verdadeira transformação, aprofundando a capacidade de reprodução de idéias. Tornamo-nos reféns de nossa crescente incompetência em desvelar o mundo. Os movimentos genuínos, o respeito à inteligência alheia, a camaradagem no espaço público, a competição ética no espaço profissional, tudo esboroa diante da tenebrosa tendência em ter, acumular, prevalecer, eliminar. 


A moral do mercado permite e estimula as ações de esforço programado, bastando que paguemos para a felicidade ficar ao alcance. Se não for alcançada, ora, você é o culpado. Uma vez isolados, mordemos qualquer isca. Seremos felizes, fragilizados; teremos o que desejamos e sempre nos dirão que falta algo. É a ambiguidade moderna, pois como diz Sennett, se não temos mais tempo para nos dedicarmos às relações duradouras, elas são insistentemente oferecidas como a solução para nossas aflições.

Definitivamente não há mais utopias coletivas, e os sonhos individuais tornam-se vulgares. A beleza da vida perde seu lugar para os movimentos comezinhos: se possuo, é o que me basta para que os outros me vejam como bem-sucedido; se posso consumir, é o suficiente para que eu me sinta bem. No mais, passo a compreender cada vez mais a ideologia do isolamento, da segurança entre iguais, da segregação porque a violência urbana pode me atingir... Sigo refém da minha incompetência em desvelar o mundo, em vias de temer minha própria sombra. De vez em quando uma ousadia tolerada, um porre com os amigos, um banho de cachoeira, um fim de semana em um resort, ou um pouco mais além, uns dias com o Pateta na Disneylândia...

Nesse ponto, retorno à situação descrita no início. Há um registro simbólico na fala do detento, que reflete o espírito desta pós-modernidade: com seu jeito de enfado, o personagem desenvolve com fria naturalidade a narrativa elíptica. Descreve seu crime como se descrevesse alguém almoçando em um restaurante qualquer, entre garfadas e goles de vinho. A indiferença como resultante do vazio de propósitos, do distanciamento em relação ao outro, um discurso que caracteriza a essência desse tempo presente que vivemos. O insólito perde as cores, torna-se um ato banal, igual a qualquer gesto desperdiçado. Uma perda a qual nos condenamos, a nossa facticidade reduzida a uma entusiasmante experiência bovina.


08 abril 2009

A senhora Hutner



As lembranças da senhora Hutner estimulam delicadamente sua razão de existir. Quando jovem, desejava logo que possível retornar a sua terra, junto a seus pais. A vida pregou-lhe uma peça e a reteve em paragens longínquas, de tal modo que acompanhou, à distância, a morte do pai, depois da mãe, como também do senhor Stênio e de dona Marta, os padrinhos. Procurou manter a esperança de um dia retornar, nem que fosse apenas para se banhar no pequeno regato, nos fundos da velha casa.

A senhora Hutner agora vive com o senhor Hutner uma vida sem percalços, bastante frugal em seu cotidiano. Consegue saber dos irmãos e dos sobrinhos, um ou outro primo, mas por alguma razão eles permanecem longe do calor de um abraço demorado, ou de uma boa conversa na varanda, ao cair da tarde. Para o senhor Hutner, a memória é paulatinamente subtraída com o suave passar dos anos, de modo que não desconfia das tramas alimentadas por sua esposa. Para a senhora Hutner, o passado não só é presente, como atuante, sendo possível a cada dia torná-lo uma pequena surpresa, em reverberações inesperadas. É outono, a cada manhã, ela dirige-se à sala de estar e ao olhar para o quintal gramado, depara com uma cena distinta. Na última, acompanhou seus pais caminhando juntos, de mãos dadas, prestes a abrir o portãozinho para entrar.

Aos poucos, os parentes mais queridos, o padre da comarca, o açougueiro da esquina, o carteiro portador das novidades, a mulher dos bordados, a primeira professora, as crianças do quarteirão, as amigas do colégio, os homens desejados, ou mesmo os rostos curiosos que apenas passaram e ficaram marcados, todos representam situações prosaicamente imaginadas, que são apreendidas através das amplas vidraças. Ao espreitarmos seu sorriso e entrevê-la em meio a suas reminiscências, presumimos a senhora Hutner feliz.