Aquele Café era uma espécie de referência indispensável dos nossos
encontros, onde decidíamos os temas e alinhavávamos a escritura das ideias e do
futuro. Naquele dia a ameaça de chuva me fez chegar antes da hora e escolher
uma mesa estratégica no andar de cima, ao lado de amplas janelas que me
permitiria acompanhar a circulação dos passantes pela rua. Não demorei para
rascunhar umas linhas e quando me encontrava na terceira lauda de rememorações vagas
e descartáveis, o vento frio anunciou a quase imediata chuvarada torrencial.
Minha atenção voltou-se para o caudal incessante da água percolando
intensa ao lado da guia, logo transformando a rua e a calçada num leito transbordante,
pegando de surpresa aos pedestres que ainda conseguiam circular. Ao longe, a
silhueta inconfundível de M., protegida por uma capa vermelha, a sombrinha
frágil movendo-se de um lado para o outro pela ventania, carregada de livros e cadernos.
Por um momento temi que não conseguisse chegar ao Café, e mesmo sob o temporal,
demonstrava a graça toda característica de seu caminhar, desta feita saltando
com delicadeza as poças que se formavam. Os trejeitos corporais no caminhar complementavam
a versatilidade daquela mulher, a alegria de ser mesmo em circunstâncias tão íngremes.
Logo desapareceu sob minha janela, o que significava que tinha
alcançado o Café. Pensava nas primeiras palavras que lhe diria quando ela
chegou à mesa e sentou-se. Um frio na espinha me estremeceu, já não sabia se a
encontrava ali para alinhavar os nossos compromissos acadêmicos em conjunto, ou
se pelo amor àquela presença magnética, que obnubilava todos as outras razões de
viver. Aguardei um pouco, M. esbaforida, emitia frases desconexas, e sorria,
olhando-me. A chuva precipitava agora com toda a fúria, Ainda bem que você
chegou, comentei retrucando o sorriso. Ela se desfez das coisas que carregava e
demos um beijo casto. Isso não pode prosseguir dessa maneira, pensei em um vão
de nossa conversação inicial, enquanto olhava para os grandes olhos azuis de M.
que indagavam por onde começar.
Era essa a dúvida crucial, por onde começar, e depois, de que maneira prosseguir? À aproximação de Rita, a atendente que conhecíamos de longa data, ela
pediu os dois macchiatos de sempre, enquanto abria o fichário com suas
anotações.
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