Lagrimas de sangre, Guayasamín |
Não houve qualquer referência de destaque na mídia sobre a tragédia de Nagasaki, há 78 anos. Falo de Nagasaki, oculta à sombra do episódio de Hiroshima, que também não tem mais aparecido na mídia. Nem, por certo, pedidos de desculpa do governo norte-americano. Depois dos textos de Tamiki Hara, e das imagens de Hideo Sekigawa, percebo o quão distinta é a percepção e a análise das explosões, considerando o olhar ocidental e o que aprendemos em relação a ele, e o relato nipônico.
No primeiro caso, o fato é tratado sempre sob a frieza dos dados objetivos, número de mortos, destruição física da cidade, razões impositivas de cunho político, como uma quase justificação do ato. Ou, sobrevém o gesto misericordioso, como uma pena a ser paga pelas palavras acerca do sofrimento alheio. Nas narrativas japonesas - literário, imagético - surge o olhar que consegue impressionar até os nossos dias, a visão cotidiana do fato e de suas consequências. Consegue ser isento nas emoções, apenas descrevem o hediondo momento e os desdobramentos da vida. Até porque não há motivos para remeterem-se à política alucinada dos militares japoneses, porque isso conhecemos, a cegueira sobeja.
Mas ali, no calderão dos acontecimentos, sobrevivem as famílias que não detinham qualquer poder, pessoas comuns que em suas conversas ironizavam a caminhada do Japão para a Idade Média. Cumpria-se o ritual diário de ir e vir, olhando para os céus, atentos ao próximo alarme aéreo.
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No domingo passado, as eleições primárias na Argentina (PASO, Primarias, Abiertas, Simultáneas, Obligatorias), que definem os candidatos majoritários por partido ou coligação, e eliminam os pequenos partidos para a votação principal, que ocorre em outubro. Trata-se de uma interessante prévia acerca das pretensões do eleitorado, e desta feita, venceu com boa margem o sinistro ultraliberal Javier Milei, com pouco mais de 30%, seguido da coligação de centro direita, com a não menos sinistra Patricia Bulrich, pelo Juntos por el Cambio, somando mais de 28%, e com 27%, em terceiro lugar, a coligação peronista Unión por la Patria, com Sergio Massa. A abstenção ultrapassou a 30%, sendo a grande vencedora do pleito.
Olhando friamente os números, o quadro é assustador. Mas por alguma razão, não me sinto apreensivo. Primeiro porque não creio que Milei consiga vencer, seja em primeiro, ou principalmente em segundo turno. Sua boca descontrolada e visceral emite códigos de governabilidade que começam a ser assustadores. Em segundo, foi oportuno a vitória de Bulrich e não de Larreta, em sua coligação. Aqui também há um certo desconforto pelos modos truculentos da candidata, que um dia foi montonera e agora se vende como liberal. Larreta seria um candidato mais propício para aglutinar o mercado ao seu redor. Em terceiro, há muito voto branco, nulo e ausente que pode rever a posição no segundo turno, e não acredito que quem o faça, venha maciçamente votar em Milei, ao contrário. E por fim, Sergio Massa, como candidato peronista e atual ministro da economia, não ficou tão distante, menos de 3% de Milei, e 1% de Patrícia, confirmando um quadro instável e indefinido.
A economia argentina não irá entrar nos eixos nestes dois meses, e a posição de Massa é ambígua: pode sofrer mais desgaste se a inflação aumentar (e é o que tudo indica), como pode ganhar mais robustez, se conseguir convencer a população com seu plano de governo de cunho mais social e distributivo. Não podemos saber o que vai acontecer, me parece muito difícil haver dupla candidatura de direita para o segundo turno, mas é plenamente possível que a catástrofe Milei se sobreponha, caso o governo prossiga em seu sono profundo e não compreenda os sintomas de uma população empobrecida e abandonada.
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