03 março 2023

De volta ao futuro


Frevo, 1956 (Portinari)


Vejo alguns escritos meus de 2016, 2018, 2021, quanto sofrimento, quanto desperdício. O tempo cronológico passou, e em sua intangibilidade, escorreu, nossa existência envelheceu. Somos os mesmos, menos ágeis, menos atentos e ainda assim seguimos nos desdobrando para encarar os fatos. A vitória eleitoral anuncia o que já intuíamos, a recuperação dos encantos eliminados, a retomada da vida desperdiçada. pela bufonaria instalada neste país, de maneira irresponsável. 

Agora, como tudo não tivesse sido um lamentável equívoco, quem detratou pede suas desculpas, quem agrediu cala-se em seu canto, quem clamou pelo mito ou está preso, ou se faz de desentendido. Esse país segue no seu atávico desígnio de surpreender pelas bobagens ou pela violência - ou por ambos ao mesmo tempo. O ex-capitão não se move em seu doce exílio em Miami, seus filhos e apaniguados submergem em seus comportamentos descartáveis e uma massa de ignorantes políticos sussurra entre os iguais, vez ou outra empunhando uma arma para atirar e matar.

O mais difícil de tudo foi esse inesperado retrocesso da sociedade brasileira como um todo, aquela que nos afiançava (sem qualquer garantia) que as ditaduras, a fome e a desigualdade social ficavam para trás. Os acontecimentos dos últimos sete anos demonstram que não só não aprendemos nada, como involuímos políticamente, abrindo uma fenda divisória, expondo a putrefação de nossa sociedade, que não cansa de apunhalar sua história. Somos submissos, xenófobos, intolerantes, e aprendemos a apreciar a imbecilidade como comportamento. 

Tenho um vazio em meu peito, como se aguardasse o mármore frio da indiferença. Em muitas aulas, e mesmo em leituras de meus textos nos muitos congressos da vida, deixava-me levar pela emoção sentida ao descrever a bravura cívica de nosso povo, de suas lideranças, de seus momentos épicos, as revoltas que tentaram ajustar essa expectativa eliminando a realidade opressora. De súbito, nos restam os Moros, Pazuelos e Fantineis, que vieram apenas para voltar de onde vieram, os becos mais imundos.  

Penso em Florestan Fernandes, que tratou de sua doença em um hospital do Estado por se recusar a gastar o dinheiro público. Darcy Ribeiro, que morreu sonhando este país. Manuel Bomfim, Caetano, Gal e Gil. Penso na luta atilada dos negros escravizados que cumpriam suas obrigações, atormentados em seu cotidiano, desejosos em vislumbrar um futuro mais justo e equanime. Penso nos imigrantes e nos migrantes heróicos, dos judeus aos nordestinos. Penso na força das palavras de Graciliano, na poderosa indignação de Paulo Freire, nas cores brasileiras nas telas de Tarsila, na ousadia dos artistas de nossas periferias urbanas, no dia a dia solene e enviesado, que cortou a carne dos trabalhadores. 

Claro que retomamos um ciclo de civilização que nos permitirá punir meia dúzia dessa infinitude de irresponsáveis e abrir novas alamedas para a vida democrática, e nunca será demais nos debruçarmos para apreciar o final de tarde esmaecido em suas cores do crepúsculo. Ou caminhar com os pés descalços nas areias quentes de uma praia, ao lado do nosso amor, fitando o horizonte, sem o peso da canalhice como norma social. Como disse, nossa existência envelheceu, e ainda que não da mesma forma, é possível lutar e acreditar sem rancor.


 

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