30 dezembro 2022

Pelé


Como narrava Walter Abrão, "Ele"

São palavras breves, que tentam fazer justiça ao que ele representou ao longo da minha vida. Nos últimos anos, esteve muito ausente de meus pensamentos, no alto de um panteão esquecido e pouco frequentado. Creio que ele mesmo optou pelo silêncio, pelo distanciamento da mídia, de modo que sua vejo-o realizando serenamente uma passagem, de um lugar para outro, com a discrição que sempre o marcou. Minha lembrança, digo melhor, minha homenagem, se remete aos anos 1960, não ao início de sua carreira ou ao final, mas os anos intermediários, quando meu pai, apreciador do bom futebol, gostava de me levar aos estádios para ver não apenas o seu São Paulo, mas um bom clássico. 

Foi desse modo que conheci e visitei por muitas vezes o Morumbi, o Pacaembu, o Parque Antártica, para ver um jogo do Santos contra algum outro grande. Meu pai fazia parte do ritual que se reproduzia a cada fim de semana. Havia aí uma conjunção maravilhosa: ir em sua companhia e desvelar por minha conta os segredos do uniforme branco que recobria aqueles artistas, mas principalmente os magos negros como o carvão, Coutinho, Dorval, ele, Lima, Mengálvio, Edu... A uns pude ver mais que a outros, a agilidade inata com a bola, as manobras exuberantes em campo, os gols maravilhosos eram a pedra de toque para minhas narrativas do dia seguinte, na escola.  

Mas tudo acontecia de modo simultâneo: na época do tabu contra o Corinthians, acompanhei muitos jogos pelo radinho de pilha, imaginando os lances narrados por Fiori Gigliotti. Recordo-me de uma noite em especial, quando seu gol decisivo impediu a derrota, e aquilo me bastou, adormeci como uma criança feliz, tocada pela façanha do ídolo. Nos domingos, normalmente a cobertura esportiva acompanhava os grandes times da capital, mas durante as transmissões, era comum o locutor destacado para a Vila Belmiro abrir seu microfone repentinamente, tendo ao fundo o alarido da torcida e os rojões explodindo. Era magnífico, já sabíamos que tinha sido um gol do time alvinegro. Em seguida, vinha a descrição do gol, ainda sob o júbilo do público, muitos deles feitos pelo genial número 10. 

Submetia-me por igual à sucessão de registros dos vídeo-tapes, onde se capturava para a posteridade a elegância de sua magia ao driblar os adversários. Foram estas cenas, ouvidas pelo rádio ou assistidas ao vivo ou pela TV, que iluminaram minha infância e adolescência. Havia uma tal grandeza naquelas camisas brancas de pele negra, que os corpos mortais tornavam-se sagrados, transformados em super-heróis, capazes de encantar o meu imaginário com jogadas ainda mais espetaculares, concedendo-me a partilha do néctar de cada conquista, ou mesmo do fel de cada derrota. 

Antes de Disney, de Julio Verne ou do Nacional Kid, foi ele (com os demais magos do time) quem me inebriou com seus movimentos e me fez descobrir da forma mais prazerosa o quão era, para um garoto, deixar-se levar pelo magnetismo da criatividade sem fim. Ao testemunhar sua exuberância com a bola, eu alcançava uma espécie de felicidade juvenil que em sua duração, era capaz de camuflar as tristezas do cotidiano. Essa alegria ambígua do espírito me permitiu aos poucos compreender e distinguir o mundo como um lugar complexo, erigido entre as quimeras da imaginação e os desenganos da realidade cotidiana.

(atualizado em 30.12.2022)



28 dezembro 2022

O longo pesadelo que se encerra


La navidad de Juanito Laguna,
por Antonio Berni (1962)

O final do ano se aproxima a passos miúdos. Três dias nos separam da retomada da democracia, da restituição dos direitos dos povos originários, da recuperação da floresta amazônica, de mais investimentos na cultura, saúde, educação... Como é difícil desgarrarmos dessa tragédia que nos afligiu e nos prostrou por longos quatro anos! A violência que se manifesta nestes dias, nas ruas de Brasília, nada mais é do que a confirmação da derrota pelos derrotados, um estrebuchar sem pé nem cabeça, que se desvanecerá com a restituição da democracia. Corrijo meus textos sem pressa e bebo um saboroso cálice de bom vinho português. Espanto o mau-agouro para bem longe e permito minha alma festejar!

Faltam meros três dias para que o infortúnio bolsonarista deixe o poder para se tornar página virada da história - algo que o povo brasileiro não tem como evitar. Haverá de desaparecer, e não tinha sequer ter começado. Tenho um sonho, que os novos ventos o varram para bem longe, para nunca mais! Como não acredito em justiça plena, nesses casos de desgovernos que caem, não creio que a parte robusta da canalha, responsável por tantas mazelas ao povo brasileiro, seja devidamente responsabilizada e punida pela lei. De algum modo saberá ludibriá-la, com o apoio de uma governabilidade que se restabelece para o bem comum. Faltam três dias para quebrarmos o feitiço.

Um Viva ao nosso Brasil, ao nosso povo que bem ou mal soube recuperar as rédeas, malgrado todas as dificuldades, todos os artifícios viciados, não impediram que o longo pesadelo se acabasse. Um Viva a todos nós!!



12 dezembro 2022

Sobre o novo romance


Pintura sobre paisagem da place du Tertre

Enviei à editora o meu romance, Um longo dia na vida de Ângelo Domani, inteiramente revisado. Conforme o cronograma da Caminhos Literários, devemos avançar na edição da capa e da diagramação interna e começar a divulgação da pré-venda. Se tudo sair como imagino, em janeiro fazemos o lançamento. O trabalho foi cuidadoso (não considero aqui os mais de vinte anos de preparação) e repassei cada capítulo do texto, culminando com muitos detalhes e algumas incongruências narrativas corrigidas. Os detalhes, como sempre, de ordem semântica e sintática. As incongruências, elas diziam respeito à sincronia do movimento da Domani, bem como a eliminação de pequenas falhas estruturais. 

Por exemplo, em dado momento, o sol escaldante da jornada é substituído por uma chuva que vai e vem. Essa evolução não estava bem definida cronologicamente, o personagem acusava a presença da chuva e mais adiante, repetia as reflexões sobre a chuva. Também no início do romance, o tempo de espera na rodoviária e, mais adiante, a descrição da paisagem matinal, foram reorganizados, no primeiro caso, ajustando o encontro entre o velho de chapéu e Domani, logo no desembarque de ambos, e no segundo caso, alinhando a reflexão subjetiva com a percepção da cidade e o surgimento dos trabalhadores.

No capítulo 21 pequenos acertos na descrição dos personagens na doceria. A derradeira correção mais séria foi eliminar a ambiguidade do evento que ocorreria à noite. No texto original, seria um show de uma dupla sertaneja. Isso tinha sido parcialmente corrigido, com a eliminação da dupla, o que deu à montagem do palanque um certo ar de mistério. O problema é que ainda havia resquícios da presença da dupla no final do capítulo 26, na conversa entre Domani e Maria Eduarda. Daí para frente o romance não tinha problemas, o texto estava bem-acabado, fruto das seguidas correções realizadas recentemente. Sempre estive preocupado com a finalização do romance, por isso as longas releituras para definir a melhor conclusão da história. Aguardo agora, feliz, o prosseguimento da edição e publicação.



09 dezembro 2022

Orson Welles


Orson Welles (1915-1985)

Naquele momento, nada me dava mais satisfação do que retornar, quase diariamente, ao cine Belas Artes, para rever um filme do qual sabia apenas de sua fama, e que aparecia em cópia nova. Queria compreender, com meu próprio esforço, a razão pela qual Cidadão Kane era considerado o filme mais bem realizado, digamos assim, do mundo. O que, em sua feitura, o transformava na mais impactante direção para nove entre dez críticos de cinema. As razões não deixavam de se acumular, à medida em que via e revia a película, mas o mais importante em mim foi a aura que o filme produziu. A cada cena, eu avaliava a profusão de impressões que ela própria revelava, tudo simultaneamente, como Welles havia imaginado a narrativa, o que o fazia optar por aquela tomada e não outra, de que modo havia chegado às inovadoras resoluções do som, como havia chegado a Gregg Toland para a fotografia, por exemplo. 

Muito tempo depois, no livro de entrevistas com Peter Bogdanovich, Welles conta do acaso dessa escolha: "(...) um dia o encontrei sentado na sala de espera de meu escritório, Meu nome é Toland, ele disse, e quero que me use em seu filme". Só mesmo um diretor com a abertura e a ousadia de Orson Welles para apostar em alguém que se oferecia assim para um trabalho tão importante. Welles vinha do teatro e sua experiência estava toda aí, do roteiro à iluminação, passando pela marcação dos atores. Para fazer algo genial, é preciso estar disposto a aprender, e foi o que aconteceu na interação entre Gregg e Welles. 

Em muitos momentos das conversas com Bogdanovich, e que de certo modo ocorreu dez anos antes, na entrevista com André Bazin, Welles simplesmente desmistifica certas decisões que tomou, como a mostrar os tetos dos espaços interiores, "sou da opinião de que a câmera deve mostrar aquilo que os olhos veem normalmente quando olham para alguma coisa", ou o uso da câmera baixa, "Não sei por quê. Talvez porque eu ache que o filme fica melhor com a câmera ali embaixo. Só isso". Seja como for, o brilho desses arranjos, mais a mística criada em torno de seu nome, fez com que eu voltasse ao menos meia dúzia de vezes ao cinema, para ver o filme. Naquela época, saía do emprego depois do almoço e tinha toda a tarde para desfrutar as experiências culturais na região da Paulista, de modo que não tinha pressa, nem método, era um puro deleite pessoal. 

Não deixava escapar as leituras rápidas, em matérias de jornais e revistas, sobre o diretor estadunidense, além de não mais perder seus filmes, ou suas proezas realizadas. Pouco depois tive acesso à reprodução completa de sua peça radiofônica, A Guerra dos Mundos, na rádio USP, em comemoração aos cinquenta anos do evento. Preparei-me para gravar a reprodução e ainda hoje tenho esse raro testemunho. E não deixava de me emocionar com as oportunidades: dois ou três anos mais tarde, vi em Paris, pela primeira vez, O Terceiro Homem, de Carol Reed, cuja participação de Welles se resume a poucos minutos, que se tornam mágicos por sua atuação esquiva, em que contribui seu ar misterioso captado em P&B, em uma Viena destruída pela guerra. 

Fui um felizardo em poder admirar Orson Welles quando ainda vivo e acompanhar o desfecho de sua obra. Penso que sua genialidade estava na forma de lidar com as coisas. Diante das dificuldades, sabia como improvisar. Seu Otelo e seu Macbeth são peças levadas ao cinema com grande competência. De acordo com Bazin, "Em Otelo, o artifício está a céu aberto e é recriado a partir de uma matéria inteiramente natural. Graças à montagem ofegante e cortada, aos ângulos de filmagem (que dão ao olho e ao espírito a possibilidade de ligar no espaço os elementos do cenário), Welles inventa a partir das pedras de Veneza ou de Mogador (no Marrocos, onde realizou a maior parte das tomadas), uma arquitetura dramática imaginária, (...) ornada de todas as belezas previstas e casuais que só se podem encontrar na verdadeira arquitetura da pedra natural, trabalhada por séculos de vento e de sol". 

Quando vi sua versão de "O processo", de Kafka, fiquei verdadeiramente impressionado e até hoje não consigo separar as imagens fílmicas de Welles com as imagens que faço da leitura de Kafka. A última experiência fílmica com Welles ocorreu na pandemia, em casa, quando assisti The Stranger, O Estranho, de 1945, com a participação de outro ícone do cinema estadunidense, o ator Edward G. Robinson, no papel de um fugitivo nazista. O episódio dos sinos da igreja do lugarejo me inspirou em uma passagem de meu romance recém-concluído e prestes a ser publicado.


Welles como Quinlan, em A marca da maldade



03 dezembro 2022

Sobre o processo civilizatório



O povo brasileiro pagou, historicamente, um preço terrivelmente alto em lutas das mais cruentas de que se tem registro na história, sem conseguir sair, através delas, da situação de dependência e opressão em que vive e peleja.

Darcy Ribeiro.


Parece que essa tormentosa noite vai se dissipando aos poucos, e o país recompõe o equilíbrio civilizatório. O ex-capitão não se digna a terminar decentemente com seu desgoverno, mantendo-se omisso na vida política. Lula e sua equipe de transição faz das tripas coração para dar uma ordenação razoável ao descalabro produzido nesses quatro anos. Persiste, em minha visão de estudioso social, o enigma da atração que o crápula e seus aliados edificaram junto a grandes parcelas da população, a ponto de alcançar quase metade dos votos válidos. 

Bem verdade que muitos artifícios desleais e ilegais foram cometidos, como a liberação do empréstimo consignado, as novas parcelas de última hora do auxílio emergencial, os bloqueios mal explicados da Polícia Rodoviária Federal no dia das eleições, concentrados no Nordeste do país, além do tal orçamento secreto, onde grandes dotações foram carreadas para as prefeituras aliadas, sem uma rubrica definida de utilização. Uma farra com o dinheiro público, que se juntou à chantagem empresarial de patrões bolsonaristas junto a seus empregados, na coerção por votos. Qualquer outro candidato da esquerda teria sido impiedosamente derrotado, como foi Haddad em 2018. Penetraríamos mais fundo na noite trevosa, sem qualquer esperança de retomarmos o processo civilizatório em seu estatuto mais humanitários. 

Em outras palavras, a depravação estaria institucionalizada, para se alcançar os fins que o ex-capitão e seus filhotes amestrados projetaram no início desse pesadelo, a destruição para depois reconstruir. Sabemos hoje em que bases se daria essa reconstrução, ou antes, essa continuidade destrutiva. Lula resistiu e nos conduziu à vitória, ao reencontro da cidadania. Alinhados a ele, a importante atuação da militância petista, o papel político desempenhado por Simone Tebet e das forças democráticas suprapartidárias, a atuação imprescindível de youtubers, influencers, comunicadores das redes sociais, que conseguiram contrabalançar a força do discurso da direita. Como disse em algum momento, foi a nossa Estalingrado, e na luta sem quartel, venceu a esperança, a educação, a diversidade, a justiça, a dignidade. 

Podemos anunciar que temos futuro para as novas gerações, e que este foi o momento supremo de sua reconstrução.