29 abril 2022

Papéis perdidos

Berlim Potsdamerplatz, 1991

"Há anos já tinha experimentado esse exercício de nomear um conto e desenvolvê-lo de acordo com as suítes/faixas de um LP. Foi com o H to He, ou, do Hidrogênio ao Hélio, de Van der Graaf Generator. Embora não apoiado nas letras, entendi que o texto deveria ser uma ficção científica, envolvendo-me pela instigante melodia, pelos movimentos suaves das composições. Parece que a experiência funcionou satisfatoriamente, pois quando enviei o conto ao tradutor português de uma biografia de Peter Hammil, o líder da banda, ele me respondeu que gostou, e que podia perceber um pouco da cidade de São Paulo. De fato, o personagem principal derivava de modo errático pela cidade, por um mal-estar gerado pela droga que lhe administraram. Foi esse um breve momento de minha vida em que acompanhei com interesse o grupo e seu líder, um cara com ideias interessantes a respeito do mundo. Sobre o texto, que infelizmente acabei destruindo, tratava-se de um personagem que chegava de uma longa viagem de ônibus e, por alguma razão que não me recordo, era vigiado/observado por um cientista, para seus experimentos sociais. Havia um grupo que monitorava o sujeito, a serviço do cientista e, ao final, quando um desses assistentes se decide rebelar com a experiência, ele acaba tornando-se a cobaia. Havia dois aspectos narrativos interessantes: (1) seu desenvolvimento se deixava modular pelo ritmo das músicas e, (2) o personagem principal desaparecia antes do final, com o foco narrativo mudando completamente. Era um texto longo, umas boas quinze laudas, foi escrito ainda nos anos 1980 e destruído nos anos 1990, quando em um acesso de purificação do estilo, lancei ao lixo vários textos “alternativos” ou experimentais. Uma tremenda bobagem, bem noto hoje".

(de Diários de Viagem, 2009-2010)



16 abril 2022

O que aparentemente nos resta - crônicas (2)



Já em pré-venda, pela editora Kotter, meu primeiro volume de crônicas, O que aparentemente nos resta, a ser lançado na segunda quinzena de maio deste ano. Foi um trabalho cuidadoso, de recolha de crônicas, revisão e edição, o que resultou em um belo trabalho editorial. São 41 crônicas reunidas abrangem o período de janeiro de 2016 a maio de 2019. As expectativas se desvanecem antes mesmo de pulsarem no horizonte, a despeito do esforço do campo popular em estabelecer algum tipo de resistência. O relato enuncia a progressiva deterioração político-econômica das instituições e a formalização do neoliberalismo econômico como sistema normativo, que devora o corpo e o tempo do trabalhador. Sobrevém o registro de um período em que prevalece a impostura dos que se autonomearam donos do poder; da indolência de um país vergado pela ignomínia, e o que talvez seja mais relevante, da dignidade de uns poucos que não se deixaram abater.


O livro tem a honra de contar com um texto de contracapa do escritor e amigo João Carrascoza, além do prefácio do professor da USP Alysson Mascaro. Reproduzo, abaixo, um trecho do prefácio: 


Narrar o tempo vivido concomitantemente aos fatos não é duplicar o dado em linguagem na pretensão de registrar uma exata cópia, pois não há uma língua subordinada especularmente aos fatos. Trata-se sim, necessariamente, de construir sentidos ao que se desenvolve. Assim o faz o jornalismo, assim o faz o comentário político, assim o faz a intelectualidade, assim o fazem as lutas e as disputas sociais. Mas, também, a linguagem abre o espaço para ver o dado pelo prisma da arte. Novos horizontes se abrem, paralelos, rupturas, ângulos e perspectivas se delineiam, impactando sofrimentos, dores, alegrias e esperanças. Esta arte de tratar dos fatos conforme se desenvolvem é o que Marco Antonio Bin constrói neste O que aparentemente nos resta – Crônicas sobre a impostura, a indolência e a dignidade.



07 abril 2022

Formas de contemplar a vida (2)

Anhalter, 1991

Caminhei desde a Kudamm, via Lützowstrasse, passei pela Potsdamerplatz e agora me encontro no museu da Comunicação, em seu simpático café. Sigo em minutos para o objetivo do dia, a estação Anhalter, uns 200 metros daqui, tentando aproveitar o restinho de luz do dia. O café está quente e acolhedor, um ambiente espaçoso, mesas despojadas, a iluminação que brota delicada dos lustres e das arandelas nas paredes, uma tonalidade grená que combina com o chão de madeira crua. O lugar parece renovado, com um desenho moderno, confortável para bebericar um café. Ao fundo, do lado do balcão, um pequeno hall, a antessala que se confunde com uma coxia de teatro, a cortina ocultando parte da saída, cabides à disposição dos clientes. Uma porta livre tem uma placa com os dizeres “das Kaffeehaus”. À minha esquerda, três imensas janelas oferecem a visão possível de um terraço, cuja mureta acha-se coberta com uma grossa camada de neve. Aos poucos chegam mais pessoas, que agitam o ritmo de trabalho da única atendente. Nenhuma novidade a esse respeito, em diversas cafeterias alemãs que frequentei até aqui, é comum uma valente mulher encarar sozinha os pedidos. Em meu inglês desajeitado, pedi uma grande taça de café e um pedaço de bolo, e logo eles não demoraram a chegar, uma deliciosa imagem. Logo vou atravessar o salão e dirigir-me pela última vez a ela, para pagar a conta. A jovem e dedicada atendente, que vejo por um breve instante. Com o meu adeus, se tornará matéria da memória. Toda essa elegante presença a um passo de se transformar em recordação. Recordo-me de dois personagens conversando em Cidadão Kane, e um deles comenta ao outro sobre a efemeridade de um longínquo encontro, descreve o olhar de uma mulher no tombadilho de um navio que zarpava para o mar, e que por um instante cruzou com o seu, no cais, Sabia que nunca mais a veria novamente, ou algo assim. O vazio que causa esse sentimento de nunca mais é a consciência evanescente do momento presente. Essa, a constatação que surge a todo momento ao longo de nossas existências.



05 abril 2022

Miles

 


Retirou-se do tablado mais cabisbaixo do que nos últimos dias, alheio aos aplausos entusiastas que não cessavam e aos primeiros admiradores que o solicitaram na coxia e nos camarins. Presenciei os passos titubeantes, o vago olhar, pausado e insatisfeito, sem que imaginasse que algo de anormal ocorresse. Uma falha grave ocorrida ao longo da apresentação já teria sido exposta com veemência ainda nos corredores. Mas seguíamos todos imersos nos afagos e no fog de tabaco. Aos poucos ele se esquivou da cena, com seus gestos gentis, para enfurnar-se no anexo pessoal, pedindo que trouxessem uísque e fechassem a porta. Repetiu silenciosa e furtivamente um ou dois takes, incorporando em gestos uma sequência de floreados moderados, o cigarro entre os dedos. Foi como se, por algum motivo específico, precisasse se concentrar para repassar sua performance.

Mais tarde, já no hotel, dispensou as duas amigas que nos acompanhavam e sentou-se à minha frente, no confortável sofá branco, segurando um copo de scotch. Não durou muito a introspecção inquieta e logo se levantou e caminhou até o terraço, apreciando o movimento adormecido da avenida, como se isso o inspirasse. As luzes dos automóveis projetavam manchas luminosas na pista, vez ou outra um bonde rugia sobre os trilhos, com o tilintar característico de alerta, anunciando sua passagem. O ar fresco da noite espargia a garoa fina e persistente, imersa na neblina que borrava os letreiros luminosos.

Retornou com a expressão facial menos grave, o si maior não saiu hoje, Tom. Não entendi na primeira vez e ele repetiu, com a ajuda das mãos, o si maior... e gesticulava com as duas mãos, como se tocasse um trompete imaginário, ... não saiu como eu queria... Era o desalento por não ter alcançado uma nota em sua devida intensidade melódica, por entender que isso afetara a força espiritual em sua performance. Permaneceu por um instante estático, sem nada dizer, os olhos baços em algum ponto de outra dimensão, a penetrar a parede às minhas costas. Não reagi ao seu comentário por não saber exatamente o que dizer. Estava hipnotizado pela ausência de reação daquele cara tão expressivo com seu instrumento. Os minutos arrastaram-se por uma eternidade envolvendo o último gole e a retirada para o quarto.

Seu corpo, mais alquebrado que de costume, desistia da noitada mal começada e deslizava para o refúgio solitário. Estirei-me no sofá, contagiado pela letargia da noite. Fechei os olhos e aos poucos repassei os detalhes da apresentação, cada take, os solos, os riffs fraseados e adormeci em meio à jovialidade shibui de um magnífico trompete.