Veronese, Bodas de Caná |
26 dezembro 2021
Final de ano
23 dezembro 2021
Ameaça
Alfredo
García Vega esperou minutos para ser atendido na recepção do hotel. Bateu no
sininho e nada. Ao dar o primeiro passo em direção à saída, sentiu um novo
tremor, desta vez mais forte que o primeiro poucos minutos antes, que o fez
caminhar feito um bêbado até se escorar em uma poltrona. Aturdido, atravessou o
saguão completamente vazio. Do bar, ao fundo, ouviu apenas o tilintar macabro,
sob a trepidação inusitada. Em meio ao silêncio profundo, passou a distinguir um
ribombar distante, uma sucessão de trovões ou, o que parecia absurdo, disparos de
grosso calibre.
Uma vez na rua, não
constatou qualquer movimento; um vento quente bafejou-lhe o rosto, como o sopro
deslocado de uma imensa fornalha. Passava pela calçada, em sentido contrário ao
seu, um sujeito fardado com o semblante atribulado, bloco de anotações em uma
das mãos. Garcia Vega de um salto se interpôs ao desconhecido a barrar-lhe o
caminho. Indagou sobre aqueles tremores e ruídos que se sucediam. O homem o fitou
de modo grave e prosseguiu em seu trajeto. García Vega começava a se arrepender
pela escolha de seu pernoite, um lugar esquecido no mundo, abandonado ao seu
desdém. Sua impressão era a de que havia algo de errado. Correu ao encalço do
desconhecido.
Tomou-lhe pelo braço no
meio da rua, O que está acontecendo?
O homem, ainda mais impaciente e sem dar tempo para que Garcia Vega refizesse a
pergunta, recomendou que se dirigisse ao posto militar mais próximo e que se
alistasse. Garcia Vega ficou absolutamente sem ação diante do comentário. Notou
que seu interlocutor trajava um uniforme anacrônico, um chapéu militar decorado
por um penacho, o jaleco azul claro com fios dourados bordados entre as
fileiras de botões, o que o remetia às guerras napoleônicas, ou de modo mais
apropriado, a um recém-terminado desfile carnavalesco.
Após as advertências, o homem fez umas breves anotações e desvencilhou-se de uma vez, deixando García Vega absorto em seu desespero. Alguém me ajude!... balbuciou ao chegar no meio da rua, não foi ouvido. Três poderosos estrondos sacudiram as edificações e os poucos automóveis estacionados. Dois cavalos negros, certamente as presenças mais belas daquele episódio, surgiram em galope frenético, na direção contrária a que se dirigia o homem fantasiado, para terminarem sugados pela sofreguidão da noite. Prolongava-se um tempo estagnado, como em uma triste fábula, cuja cronologia se perdia no rumor dos estranhos acontecimentos.
Já à distância, o hipotético militar voltou-se para García Vega e retomou gestos e palavras perdidas, talvez insistindo para submeter-se ao posto de alistamento o quanto antes. E desapareceu em meio às incertezas da narrativa.
20 dezembro 2021
Ignácio de Loyola Brandão
O livro que desperdicei por anos |
11 dezembro 2021
Julian Assange
01 dezembro 2021
Os ossos de cada dia
Fila para a compra de ossos |
O desgoverno do capitão caminha melancolicamente para seu derradeiro ano, sem que nenhum índice socioeconômico tenha melhorado. Uma tragédia anunciada desde o princípio. Feneceram aos poucos todas as pobres promessas de campanha, exceto aquela em que disse, pouco antes de um jantar em Washington, que seria necessário primeiro destruir o país para então reconstruir. Cumprirá da melhor forma a primeira parte e não terá tempo para a segunda, seja lá o que o desventurado entenda sobre o assunto.
O fato foi que não teve a mínima competência para esboçar um projeto de nação. Se satisfez em negar o que existia e a insultar os que divergem politicamente. Foi diretamente responsável pela tragédia pandêmica, ao postergar a compra de vacinas contra o Covid-19. Foi responsável pelo isolamento diplomático do pais, pela terra-arrasada promovida na saúde, educação e cultura. Acelerou o processo de privatização da Petrobras, onde não temos mais a soberania sobre o nosso óleo e gás e não satisfeito pela bagunça, destruiu as políticas de proteção social, sendo o ato mais recente, a extinção do Bolsa-Família.
E sem falar na catástrofe da economia, com um ministro ineficaz, que não sabe o que fazer com a alta da inflação e do desemprego. Nada a comemorar, portanto, neste final de ano, que esperamos, seja o último deste desgoverno insano e farsante. No próximo, ele ainda estará ocupando o Planalto, mas com data marcada para sair, logo no dia primeiro de janeiro. Só então poderemos contabilizar toda a desgraça produzida em quatro anos. A cena que vemos acima tem se repetido em diversos pontos do país, com a fome grassando e a população pobre fazendo fila para a compra de ossos. Nunca imaginei que poderia reviver essa barbárie em meu país.
Há treze anos escrevi um conto chamado Ossos para o Natal, que publiquei neste blog. Não se trata de uma visão premonitória, mas de uma lembrança angustiosa que tenho da minha passagem por Ipuã, no início da década de 1980, quando o país declarou a moratória junto ao FMI. Era o final do ciclo de governos militares, a redemocratização ganhava corpo, mas a fome e o abandono das classes menos favorecidas eram parte da triste realidade social no país.
Perto do quartinho que alugava, existia a única indústria que oferecia empregos em massa, o frigorífico, e me recordo das narrativas do seu Agnaldo trabalhando no setor de descarte e tendo de afugentar as pessoas que lá acorriam como derradeira esperança para preparar um ensopado de ossos. Seu salário era irrisório para um trabalho bruto e indecente. Em determinado momento seu Agnaldo, de quem jamais voltei a ter notícias, era tomado por uma espécie de riso incontido, tomado pelo desconsolo daquela situação. Contava e recontava suas jornadas, sempre com o acréscimo de um detalhe mórbido, como se buscasse purgar os pecados. Havia lágrimas em seus olhos. Estava sempre alcoolizado, pois dizia que aquela experiência era demais para suportar sóbrio.
Meu conto também acabou publicado em outro blog, o do jornalista Milton Jung, em uma versão modificada, e o inclui no meu último livro, O fragor silencioso de cada dia. Por sua dolorosa atualidade em descrever um episódio que viceja nos territórios de precariedade de nosso país, e agora que nos aproximamos do Natal, o reproduzo abaixo, lamentando que não seja o registro de um passado superado, ou de uma pesarosa narrativa ficcional.
Ossos para o Natal
Terminou de recolher os ossos, ao tempo em
que um novo dia se espraiava. Viu os dois colegas pularem do caminhão carregado
e da plataforma de carga, teve mais uma vez a ideia do quanto haviam dado duro
para que o veículo pudesse sair na hora certa, a fedentina coberta de moscas se
afastando progressivamente, sem que seus olfatos se dessem conta. Deixou os
dois colegas e no caminho do banheiro, pode confirmar intuitivamente que não
haveria mais abates. O espaço reservado às reses estava vazio e o pessoal da
matança se divertia num canto. Era uma situação muito rara essa de terminar o
trabalho antes do almoço. Como todos no matadouro, labutou pesado desde a noite
anterior, mais de sessenta reses abatidas e carneadas, os ossos avermelhados
escorrendo pela calha até estalarem na plataforma de carga, no lugar que todos
conheciam como o cu do frigorífico
e onde os caminhões encostavam, numa sucessão frenética, para serem carregados
pelos três do setor de ossos.
Abriu uma das torneiras do chuveiro
coletivo, as gotas frias caindo, esparsas, por poucos minutos. Enquanto se enxugava
viu pelo espelho seus dois companheiros entrando para o banho. Mirou-se uma vez
mais, viu a imagem esgarçada, cujos traços se definhavam com o passar dos dias e
dos meses. O olhar, que um dia fora de perseverança, estava nebuloso. Penteou
os cabelos ainda úmidos enquanto pensava na proximidade de mais um final de ano
que o pegava desprevenido. Lembrou-se que a noite seguinte seria de Natal,
desejos de consumo que afloravam e presentes que se furtavam. Não saberia como
encarar seus filhos, para quem as promessas de melhores dias se acumulavam.
Maldito emprego, esbravejou para si, chamando a atenção dos amigos. Saiu às
pressas, ganhou as ruas banhadas pelo sol inclemente, não conseguiu sentir-se
livre.
Pensou em beber um trago no boteco,
diante do ponto de ônibus, afinal ainda era cedo. Os amigos o convidaram para o
bilhar. Bateu a mão no bolso, parte do dinheiro do vale estava ali, bem, por
que não um joguinho? Tentou desabafar antes das tacadas, reclamando dos seus
fracassos, que por serem também dos demais, caíram no vazio. Ninguém estava a
fins de lembrar da vida, mas aproveitar o jogo e beber. Vieram à baila os
prognósticos do campeonato do bairro, comentários da prisão do Bola Sete, as
mulheres do imaginário e da vida real... e o tempo passou. No final da tarde,
já bem grogue, resolveu ir para casa, mais pela falta de dinheiro do que por
vontade própria.
A noite pronunciava-se com a languidez habitual, quando sua silhueta despontou no alto da rua de terra. Brincando em frente do barraco, o filho menor viu o pai se aproximar. Os demais filhos e a mulher o receberam, num silêncio ainda mais grave que de costume. O mesmo homem, bêbado, sem forças, ruminando desgosto. Ele tirou da mochila dois belos ossos com alguma carne em seus interstícios, colocou-os na mesa junto com a roupa suja e foi para o quarto, desabando na cama até o dia seguinte.
(atualizado em 01.12.2021)