Victor Serge no México |
No livro Memórias de um revolucionário,
à página 362, há uma delicada descrição de Serge, prestes a ser transferido para
algum lugar não definido pela GPU, como se designava então a polícia secreta
soviética: "O velho Eltsin, tolhido pelo reumatismo, vivendo num
quartinho gelado, numa casa sem banheiro, quando lhe perguntei, 'Devo fazer no
exterior uma campanha de imprensa para exigir a sua saída?', disse: 'Não, meu
lugar é aqui' ".
Serge, favorecido por sua dupla cidadania, belga e
soviética, e por uma campanha intensa dos intelectuais europeus, conseguia,
depois de três anos como deportado nos confins do Casaquistão, ser banido da
URSS. Sua descrição sobre esses espaços ignotos e sem-fim impressionam pela
simplicidade do processo: após dias e mais dias de transporte ferroviário, o
condenado era desembarcado e entregue à própria sorte, tendo que se apresentar
regularmente à sede local da GPU. Temperaturas rigorosas no inverno e verão,
subempregos e as transferências para outros rincões faziam da luta pela vida
uma tarefa íngreme. Sobreviveu, segundo suas palavras, por não ter capitulado
nos interrogatórios que amargou, por apoiar Trotski e outros velhos
revolucionários que faziam parte da Oposição ao regime de Stalin. Caso tivesse
admitido algum dos crimes que lhe eram falsamente imputados, certamente não
teria recuperado a liberdade.
Eltsin, assim como outros companheiros de Serge,
Bobrov, Guirchek, Bielienki, que lutaram pela construção do socialismo na URSS,
sofriam o desterro que, pouco tempo mais tarde, culminaria em seus
desaparecimentos. Tinham participado da tomada do palácio de inverno, da guerra
civil e depois da economia de guerra, do "passo atrás" da NEP, dos
debates acalorados no Comitê Central que propiciaram, já no final dos anos
1920, a implantação da coletivização forçada e da aceleração do processo de
industrialização.
As palavras de Eltsin conformam a aceitação do
destino imposto a muitos revolucionários, de variadas tendências, deportados como valorosos bolcheviques, "meu lugar é aqui",
palavras ditas sem quietismo, simplesmente se aceitava
beber o cálice amargo até o final. Isso nos levaria, de imediato, às
descrições vívidas de Serge dos rincões perdidos na Rússia, enfiados nas
estepes esquecidas, sempre piolhentas e esfomeadas, relatos que, pela sua
densidade, pela ignomínia, envolve um processo semelhante para cada um dos desterrados.
Não o farei aqui.
Victor Serge acabou banido da URSS em 1936, no auge
dos processos de Moscou, rumo à França, graças ao forte apoio de entidades
políticas e intelectuais atuantes da Europa ocidental. Sua preocupação era
escrever, produzir sua literatura sob vários gêneros, relatando as experiências
do exílio, a poética, as perspectivas políticas. É sugestivo passar por suas
páginas das Memórias..., para se conhecer a deturpação stalinista
do que deveria ser o comunismo. Fica também claro, pelo menos para mim, que os
desígnios do comunismo democrático não passariam exclusivamente pelos caminhos
propostos por Trotski, Bukharin, Preobrazenski, ou mesmo Lênin, mas certamente
por uma conjunção de todas essas tendências. Naqueles anos turbulentos seria
difícil que as escolhas políticas e econômicas mais acertadas lograssem
sucesso.
A morte de Lênin, prematura, em janeiro de 1924,
acelerou disputas internas que imobilizariam, durante os cinco anos seguintes,
a instalação de um comunismo ao menos funcional, com uma cara minimamente
humanista, voltada para a elaboração de uma sociedade que abraçasse a
realização dos novos ideais. A guerra civil, que tomou três anos da jovem
república, retardou de modo indelével o início de um programa socialista,
distorcendo-se com a ascensão de Stálin, então o regente de uma burocratização que
imobilizaria o partido e o conduziria ao poder absoluto.
A sociedade soviética igualmente se imobilizaria,
tanto pelo cansaço como pelo terror que recrudesce e que paulatinamente
elimina os mecanismos democráticos de decisão. Não é por acaso que surge uma
oposição da qual Serge fez parte, não como uma ação
sectária, mas como o desejo de resistir ao rolo compressor burocrático. A
partir de 1934, com o assassinato de Kirov, o estado policial se
instaura e com isso, extingue-se toda e qualquer oposição interna, com o fim
físico dos velhos bolcheviques.
Pode-se estar ou não de acordo com o relato de
Victor Serge, mas é inquestionável a qualidade da narrativa, que nos leva a
vivenciar a crueldade das deportações. Trotski primeiro, e mais tarde o próprio
Serge, escaparam da humilhação ao serem banidos. E ser banido representou o
apagamento de intensa participação nas heroicas jornadas revolucionárias. Seu
texto surge de maneira crua ou poética, dependendo da circunstância. É curioso
notar que o filho adolescente o acompanha em todos os momentos mais sombrios;
sua esposa, doente, passou parte do tempo internada em um sanatório de
Moscou.
Serge ainda escaparia das garras do nazismo, na última badalada, para o exílio final no México. Lá passaria a última etapa da vida, falecendo aos 57 anos incompletos.