07 abril 2021

Trinta e oito

Correções de Regresso a Buganvília
 

"Fosse qual fosse o significado do singular encontro com seu Alberto, Ângelo Domani não mais desdobrou-se em desconsolo, nem aventou hipóteses mortas. À medida que retomava seu caminhar para a Britânia, voltou a inteirar-se dos acontecimentos a sua volta como circunstâncias fortuitas, apreendendo-os em sua intensidade. Os rumores reverberantes, a alegria das crianças, os sorvetes nas mãos, as cores das roupas, os jovens de mãos dadas, noite de festividade que o recebia como o mais um convidado, sem que o referendassem de maneira especial, ou que o espreitassem como a um culpado, tornava-se apenas um convidado a mais, em um evento diante da praça que um dia fora toda sua, de passeios deleitosos com os pais, com os primos, com Ruth.  

          

Acercava-se da multidão, mirou desinteressado para a esquina próxima no final da rua Bélgica, onde despontava a praça da fonte. Uma razoável quantidade de almas comportadas se deliciava com o final de tarde suavemente encoberta, com a espera do espetáculo. Para Ângelo, o encontro inusitado com seu Alberto abria-lhe um feixe de expectativas, nada mais do que a imaginação em seus volteios imponderáveis. Pensou nas palavras cruas de seu Alberto, encetou os primeiros passos de uma nova caminhada, no sabor dos rumos incertos, Tempo de recomeçar, tempo de esquecer... O passado em Buganvília remontava de súbito como um desmundo, como toda referência em seus prazeres e rudezas. Posicionava-se como uma história sonolenta e ainda não adormecida, e isso ficava cada vez mais claro ao andar por entre as pessoas e vê-las caminhar em círculos pela praça da fonte. Nada mais esperado que o fluxo contínuo de sensações o conduzisse à remissão do passado, confrontando situações dispersas no tempo... Acercava-se, então, à esquina... quando olhou para o outro lado da rua e teve uma vaga imagem, sob o manto das penumbras indefinidas de final de tarde, de uma fileira de casas que se sucedia em um nível mais elevado em relação à rua. A visão imaginosa identificou estéticas mais modernas de construção, casas de alvenaria frondosas e arejadas, cada qual prolongando para os fundos quintais de árvores frutíferas, separados por cercas baixas, Ainda era possível em Buganvília... A terceira casa estava onde fora em outros tempos a pensão de dona Madalena... Ângelo aguardou por um breve momento, a enorme pensão de madeira, os quartos, a cozinha com uma mesa enorme para atender os hóspedes, como lhe dizia seu pai... Marta estava lá, sua imagem surgiu de modo voraz, ainda uma vez pela reminiscência erótica, abrigando-se em seus pensamentos convulsos, desejando desta feita não lhe dar trégua, Venha!... e avançava com suas curvas sinuosas pelo corredor, conduzindo Domani ao quarto do fundo, cuja janela abria-se para o pomar recoberto de folhas secas... Era possível sentir e ouvir o alvoroço das pessoas dirigindo-se à concentração, mas permanecia imóvel, preso às reminiscências distorcidas, ungido pelo torpor que pesava sobre as pernas... a microfonia anunciando os primeiros discursos, a atenção da pequena Buganvília voltada para o palanque, o amontoado de corpos, Ângelo olhando para a pensão de dona Madalena... Marta acenava, tinha os cabelos molhados, as sobrancelhas marcantes, como uma mulher árabe... o quarto com sua coloração incerta, a cama enorme, a mulher agora envolta nos lençóis, apenas identificava sua boca movimentar, sem emitir sons... quando por fim ouviu bruscamente, Não temos mais o que dizer...


Ângelo foi lançado para a realidade inócua do presente, acompanhou um grupo de moradores encorpando a pequena multidão aglomerada, já nas proximidades da loja de seu avô. O apresentador chamava o primeiro dos convidados ilustres a subir ao palco, o súbito clamor das pessoas presentes, uma salva de aplausos que ecoou pela praça, um homem baixo, andar célere, subiu e avançou pelo proscênio e sentou-se em uma das cadeiras disponíveis. O apresentador insistiu para que falasse algumas palavras... Domani apurou a visão distorcida, teve a impressão de reconhecê-lo, a luz não ajudava, estava é verdade um pouco longe para discernir os detalhes, mas... sem dúvida era a silhueta atarracada de seu avô... então se sobrepôs a voz amplificada, tonitruante, monopolizando a atenção da imensidão de indivíduos, que a essa altura tomava a maior parte da esplanada da fonte luminosa, em frente ao palco. A massa inquieta movia-se com a plasticidade de uma onda, para um lado, para outro, então se aquietava em meio ao rumor pronunciado, que abafava a voz metálica, e enaltecia, entusiasta, cada pessoa da comunidade convidada a subir e acomodar-se em uma das cadeiras... E foi com o segundo nome que Ângelo confirmou seus atormentados presságios, subiu o homem que lembrava o padre Simphoriano, em seguida... mais pessoas chamadas, mais nomes conhecidos e desconhecidos, todos aqueles que imaginava pudessem subir, Átila, a professora Regina... sob silvos, aplausos, gritos de aclamação, subiram todos os que Ângelo se recordou ter encontrado em sua peregrinação... as ondas recomeçavam, começavam a durar mais, passaram a empurrá-lo para mais distante do palco,  para os baixios da praça... Subiam os personagens que identificava das lembranças atribuladas, chegou a vez de dona Madalena, secundada por ninguém mais que Antonio Rodrigues (e agora era o som que lhe parecia incerto), que abraçou Alberto e tantos quantos se alinhavam na fileira dianteira, para virar-se ao público, a quem agradeceu com uma prolongada reverência aos apupos, indicando que os demais mereciam parte do reconhecimento do público... até que se elevou ao palco a mulher envelhecida, solitária, o caminhar capenga, demorado, como se Ruth fosse, até que Rodrigão a envolvesse em um caloroso abraço, sob os acordes de um tango tocado por uma orquestra invisível, que bem lembrava Juan D’Arienzo, Garronero, e em seguida, Aguilucho...


Ângelo se esvaia em sua vã luta, acompanhando de relance cada cena e se debatendo inutilmente contra a maré humana que não se acalmava, conduzindo-o mansamente para os confins da praça, de modo decisivo, irrevogável, como se todos quisessem bani-lo das festividades... Nesse ínterim o prefeito surgiu, com sua voz prejudicada pelo sistema de som, tecendo palavras gentis aos nobres cidadãos que compartilhavam com ele o proscênio, ao tempo que os uivos e aplausos se confundiam, oriundos por todas as partes... Ângelo, em um supremo esforço, decidiu enfrentar a adversidade inesperada e remar contra a maré, procurando recuperar uma boa posição. Sua participação parecia condenada a uma observação fugidia, o espetáculo que desde o princípio o acompanhou e lhe pareceu descartável. Continuava sem qualquer desejo especial em assistir. Por mais que desejasse ficar, a multidão não cessava de levá-lo para mais longe. Quando ganhava algum terreno, o esforço era mantê-lo a todo custo, em meio a um turbilhão de corpos inquietos. Desviava para um lado, ganhava um metro, conseguiam detê-lo, como se a refrega se tornasse um acerto de contas entre ele e a cidade e então Ângelo sucumbia à pressão e recuava, e lutou por um tempo. Viu-se na esplanada em que se localizavam as mesas de concreto, onde pela manhã vira o jogo de truco e como outros, subiu em uma delas, ainda livre, para ter uma visão mais nítida do palco, de onde só escutava as falas do prefeito. Aos poucos, porém, o som eletrônico foi se perdendo em ondas abafadas e cortadas, que se misturava com a algazarra das centenas de pessoas que chegavam e conturbavam a cena.... Pouco podia ver dos semblantes... Insistiu em visualizar os convidados, mas estava condenado a vê-los desaparecer no mesmo átimo em que surgiram... impressões que, longe de proporcionar respostas, o enredavam no mistério do imponderável... À anônima presença, não se oferecia mais do que as imprecisões de um relato ausente... tristeza e condescendência, em meio ao vagar dos pensamentos. Novos convidados articulavam homenagens, lembranças, lamentos, quando Ângelo voltou-se para o restaurante, no desejo de localizar Maria Eduarda e, em um derradeiro esforço, lançar-lhe um olhar apaixonado. Insistiu o quanto pôde, mas a visão era obstruída pelos animados espectadores, que faziam do largo um maciço de corpos e vozes. E recuou ainda mais, para os confins da praça e mais além... Ângelo cambaleou e com esforço seguiu para onde ainda era possível, para a lomba desconhecida da Britânia, para outros caminhos menos iluminados e concorridos

 

Atingiu o ponto extremo, em que o movimento rareava, permitindo um deslocamento menos dificultoso. Esfregou o peito, dentro da camisa a carta de Ruth, era o único bem que dispunha, juntamente com as folhas amarrotadas das anotações, que carregava nos bolsos da calça... Sem bagagem, sem passagem de volta... As sombras surgiam mais fantasmagóricas, a iluminação escassa brotava menos intensa dos postes, a vegetação se pronunciava nos terrenos livres, em matagais mais extensos que penetravam a noite. Casais imberbes se insinuavam para um momento mais íntimo, nas saliências mais ocultas, enquanto jovens desgarrados bebiam e extravasavam seus gestos sob as luminárias públicas. Projetava-se aquele som melancólico que se anuncia depois dos encontros, após a intensidade das comemorações. Emergia uma brisa sem forças, que lambia as vestes e abrandava logo em seguida. Nenhum automóvel ousava circular, quebrando o tempo libidinoso dos pedestres que se escasseavam. Ângelo passou diante do que, em tempos idos, fora a insípida estação de ônibus, agora transformada em um posto de gasolina. Prosseguiu pelo meio da avenida e um esbarrão inesperado desviou sua atenção para a entrada de um terreno baldio, com uma roda de pessoas e Maria Eduarda em animada conversa... Ângelo não permaneceu mais do que o suficiente, talvez para uma despedida silente, e continuou, para aqueles lados que aprofundavam a noite, a simular o prosseguimento de seu destino..."

(Capítulo Trinta e oito do romance inédito Regresso a Buganvília)



Nenhum comentário: