25 abril 2021

As evidências para o jovem Esteban


Montevidéu, 1989

Falei hoje com a mãe, uma conversa sem muitas novidades, suas boas risadas no começo e suas reclamações ao final. As dificuldades do convívio com meu pai sobressaem em suas dores, chateações sem consolo, que perdurarão por mais algum tempo. Sobre o pai, um distanciamento paulatino, a perda das lembranças, circunstância que se processa menos chocante do que se poderia esperar. Isso me parece, no final das contas, a parte mais triste: a perda das referências da vida. Já não é mais possível contar com a autonomia de suas recordações, quando muito elas aparecem fragmentadas, a partir de sugestões nossas sobre o passado. Uma nave à deriva na imensidão do espaço. Ainda conta com a firmeza da voz, mas a nitidez dos fatos se apagam e logo não será mais possível recompor as histórias, do seu ponto de vista. Subsiste a boa memória da mãe, mas isso é pouco perto do que já se teve. Em suma, os registros das nossas narrativas se dissipam, perdem a fortuna do seu encanto. Tornam-se poeira cósmica, ganham outro sentido ao diluírem-se na magnífica, porém inescrutável, constelação da História coletiva.



07 abril 2021

Trinta e oito

Correções de Regresso a Buganvília
 

"Fosse qual fosse o significado do singular encontro com seu Alberto, Ângelo Domani não mais desdobrou-se em desconsolo, nem aventou hipóteses mortas. À medida que retomava seu caminhar para a Britânia, voltou a inteirar-se dos acontecimentos a sua volta como circunstâncias fortuitas, apreendendo-os em sua intensidade. Os rumores reverberantes, a alegria das crianças, os sorvetes nas mãos, as cores das roupas, os jovens de mãos dadas, noite de festividade que o recebia como o mais um convidado, sem que o referendassem de maneira especial, ou que o espreitassem como a um culpado, tornava-se apenas um convidado a mais, em um evento diante da praça que um dia fora toda sua, de passeios deleitosos com os pais, com os primos, com Ruth.  

          

Acercava-se da multidão, mirou desinteressado para a esquina próxima no final da rua Bélgica, onde despontava a praça da fonte. Uma razoável quantidade de almas comportadas se deliciava com o final de tarde suavemente encoberta, com a espera do espetáculo. Para Ângelo, o encontro inusitado com seu Alberto abria-lhe um feixe de expectativas, nada mais do que a imaginação em seus volteios imponderáveis. Pensou nas palavras cruas de seu Alberto, encetou os primeiros passos de uma nova caminhada, no sabor dos rumos incertos, Tempo de recomeçar, tempo de esquecer... O passado em Buganvília remontava de súbito como um desmundo, como toda referência em seus prazeres e rudezas. Posicionava-se como uma história sonolenta e ainda não adormecida, e isso ficava cada vez mais claro ao andar por entre as pessoas e vê-las caminhar em círculos pela praça da fonte. Nada mais esperado que o fluxo contínuo de sensações o conduzisse à remissão do passado, confrontando situações dispersas no tempo... Acercava-se, então, à esquina... quando olhou para o outro lado da rua e teve uma vaga imagem, sob o manto das penumbras indefinidas de final de tarde, de uma fileira de casas que se sucedia em um nível mais elevado em relação à rua. A visão imaginosa identificou estéticas mais modernas de construção, casas de alvenaria frondosas e arejadas, cada qual prolongando para os fundos quintais de árvores frutíferas, separados por cercas baixas, Ainda era possível em Buganvília... A terceira casa estava onde fora em outros tempos a pensão de dona Madalena... Ângelo aguardou por um breve momento, a enorme pensão de madeira, os quartos, a cozinha com uma mesa enorme para atender os hóspedes, como lhe dizia seu pai... Marta estava lá, sua imagem surgiu de modo voraz, ainda uma vez pela reminiscência erótica, abrigando-se em seus pensamentos convulsos, desejando desta feita não lhe dar trégua, Venha!... e avançava com suas curvas sinuosas pelo corredor, conduzindo Domani ao quarto do fundo, cuja janela abria-se para o pomar recoberto de folhas secas... Era possível sentir e ouvir o alvoroço das pessoas dirigindo-se à concentração, mas permanecia imóvel, preso às reminiscências distorcidas, ungido pelo torpor que pesava sobre as pernas... a microfonia anunciando os primeiros discursos, a atenção da pequena Buganvília voltada para o palanque, o amontoado de corpos, Ângelo olhando para a pensão de dona Madalena... Marta acenava, tinha os cabelos molhados, as sobrancelhas marcantes, como uma mulher árabe... o quarto com sua coloração incerta, a cama enorme, a mulher agora envolta nos lençóis, apenas identificava sua boca movimentar, sem emitir sons... quando por fim ouviu bruscamente, Não temos mais o que dizer...


Ângelo foi lançado para a realidade inócua do presente, acompanhou um grupo de moradores encorpando a pequena multidão aglomerada, já nas proximidades da loja de seu avô. O apresentador chamava o primeiro dos convidados ilustres a subir ao palco, o súbito clamor das pessoas presentes, uma salva de aplausos que ecoou pela praça, um homem baixo, andar célere, subiu e avançou pelo proscênio e sentou-se em uma das cadeiras disponíveis. O apresentador insistiu para que falasse algumas palavras... Domani apurou a visão distorcida, teve a impressão de reconhecê-lo, a luz não ajudava, estava é verdade um pouco longe para discernir os detalhes, mas... sem dúvida era a silhueta atarracada de seu avô... então se sobrepôs a voz amplificada, tonitruante, monopolizando a atenção da imensidão de indivíduos, que a essa altura tomava a maior parte da esplanada da fonte luminosa, em frente ao palco. A massa inquieta movia-se com a plasticidade de uma onda, para um lado, para outro, então se aquietava em meio ao rumor pronunciado, que abafava a voz metálica, e enaltecia, entusiasta, cada pessoa da comunidade convidada a subir e acomodar-se em uma das cadeiras... E foi com o segundo nome que Ângelo confirmou seus atormentados presságios, subiu o homem que lembrava o padre Simphoriano, em seguida... mais pessoas chamadas, mais nomes conhecidos e desconhecidos, todos aqueles que imaginava pudessem subir, Átila, a professora Regina... sob silvos, aplausos, gritos de aclamação, subiram todos os que Ângelo se recordou ter encontrado em sua peregrinação... as ondas recomeçavam, começavam a durar mais, passaram a empurrá-lo para mais distante do palco,  para os baixios da praça... Subiam os personagens que identificava das lembranças atribuladas, chegou a vez de dona Madalena, secundada por ninguém mais que Antonio Rodrigues (e agora era o som que lhe parecia incerto), que abraçou Alberto e tantos quantos se alinhavam na fileira dianteira, para virar-se ao público, a quem agradeceu com uma prolongada reverência aos apupos, indicando que os demais mereciam parte do reconhecimento do público... até que se elevou ao palco a mulher envelhecida, solitária, o caminhar capenga, demorado, como se Ruth fosse, até que Rodrigão a envolvesse em um caloroso abraço, sob os acordes de um tango tocado por uma orquestra invisível, que bem lembrava Juan D’Arienzo, Garronero, e em seguida, Aguilucho...


Ângelo se esvaia em sua vã luta, acompanhando de relance cada cena e se debatendo inutilmente contra a maré humana que não se acalmava, conduzindo-o mansamente para os confins da praça, de modo decisivo, irrevogável, como se todos quisessem bani-lo das festividades... Nesse ínterim o prefeito surgiu, com sua voz prejudicada pelo sistema de som, tecendo palavras gentis aos nobres cidadãos que compartilhavam com ele o proscênio, ao tempo que os uivos e aplausos se confundiam, oriundos por todas as partes... Ângelo, em um supremo esforço, decidiu enfrentar a adversidade inesperada e remar contra a maré, procurando recuperar uma boa posição. Sua participação parecia condenada a uma observação fugidia, o espetáculo que desde o princípio o acompanhou e lhe pareceu descartável. Continuava sem qualquer desejo especial em assistir. Por mais que desejasse ficar, a multidão não cessava de levá-lo para mais longe. Quando ganhava algum terreno, o esforço era mantê-lo a todo custo, em meio a um turbilhão de corpos inquietos. Desviava para um lado, ganhava um metro, conseguiam detê-lo, como se a refrega se tornasse um acerto de contas entre ele e a cidade e então Ângelo sucumbia à pressão e recuava, e lutou por um tempo. Viu-se na esplanada em que se localizavam as mesas de concreto, onde pela manhã vira o jogo de truco e como outros, subiu em uma delas, ainda livre, para ter uma visão mais nítida do palco, de onde só escutava as falas do prefeito. Aos poucos, porém, o som eletrônico foi se perdendo em ondas abafadas e cortadas, que se misturava com a algazarra das centenas de pessoas que chegavam e conturbavam a cena.... Pouco podia ver dos semblantes... Insistiu em visualizar os convidados, mas estava condenado a vê-los desaparecer no mesmo átimo em que surgiram... impressões que, longe de proporcionar respostas, o enredavam no mistério do imponderável... À anônima presença, não se oferecia mais do que as imprecisões de um relato ausente... tristeza e condescendência, em meio ao vagar dos pensamentos. Novos convidados articulavam homenagens, lembranças, lamentos, quando Ângelo voltou-se para o restaurante, no desejo de localizar Maria Eduarda e, em um derradeiro esforço, lançar-lhe um olhar apaixonado. Insistiu o quanto pôde, mas a visão era obstruída pelos animados espectadores, que faziam do largo um maciço de corpos e vozes. E recuou ainda mais, para os confins da praça e mais além... Ângelo cambaleou e com esforço seguiu para onde ainda era possível, para a lomba desconhecida da Britânia, para outros caminhos menos iluminados e concorridos

 

Atingiu o ponto extremo, em que o movimento rareava, permitindo um deslocamento menos dificultoso. Esfregou o peito, dentro da camisa a carta de Ruth, era o único bem que dispunha, juntamente com as folhas amarrotadas das anotações, que carregava nos bolsos da calça... Sem bagagem, sem passagem de volta... As sombras surgiam mais fantasmagóricas, a iluminação escassa brotava menos intensa dos postes, a vegetação se pronunciava nos terrenos livres, em matagais mais extensos que penetravam a noite. Casais imberbes se insinuavam para um momento mais íntimo, nas saliências mais ocultas, enquanto jovens desgarrados bebiam e extravasavam seus gestos sob as luminárias públicas. Projetava-se aquele som melancólico que se anuncia depois dos encontros, após a intensidade das comemorações. Emergia uma brisa sem forças, que lambia as vestes e abrandava logo em seguida. Nenhum automóvel ousava circular, quebrando o tempo libidinoso dos pedestres que se escasseavam. Ângelo passou diante do que, em tempos idos, fora a insípida estação de ônibus, agora transformada em um posto de gasolina. Prosseguiu pelo meio da avenida e um esbarrão inesperado desviou sua atenção para a entrada de um terreno baldio, com uma roda de pessoas e Maria Eduarda em animada conversa... Ângelo não permaneceu mais do que o suficiente, talvez para uma despedida silente, e continuou, para aqueles lados que aprofundavam a noite, a simular o prosseguimento de seu destino..."

(Capítulo Trinta e oito do romance inédito Regresso a Buganvília)



04 abril 2021

Balbúrdia programada


Há exatos seis anos, à borda dos trágicos acontecimentos que tomariam lugar na cena política brasileira, escrevi nas minhas páginas das redes digitais o seguinte texto, ilustrado pela imagem que encabeça a postagem:

Palpite é o que abunda na contemporaneidade fragmentada. Palpites sobre as cotas, bolsa-família, diminuição da maioridade penal, comunistas, até sobre depressão. A sanha presuntiva nunca esteve tão em alta, em tamanha gama de palpites descontrolados, enviesados. São neocons que avacalham com o mundo, odiojornalistas que implodem com a mediação, fundamentalistas que acabam com o fundamento, filhotes que anseiam a ditadura... O mundo fica mais confuso e barulhento, tomado por esses neomercadores que no afã de apregoarem suas mercadorias, disseminam a futilidade com impressionante competência.

Considerando a realidade cotidiana então descrita sem qualquer pretensão acadêmica, mais como um desabafo marcado pela dor e revolta, hoje transcende a mera impressão dos fatos e evidencia os mecanismos da desgraça anunciada, os palpiteiros profissionais e amadores assumindo o proscênio, decretando o fim do rigor científico; os neocons não apenas liberais, mas racistas; o jornalismo de cativeiro sem qualquer responsabilidade; o fundamentalismo ideológico e também religioso, muito para além da liberdade de mercado; o afã de se reviver os descaminhos da ditadura; o ruído exacerbado de fariseus para exarar suas frustrações... 

Em outras palavras, ao meu ver vivemos hoje as consequências daquelas palavras, que sem qualquer desejo de futurologia, expressam que algo muito grave estava em claramente em curso. Mesmo o sentimento de balburdia descontrolada me parece hoje, muito ao contrário, uma balbúrdia programada para que tudo desse errado, ou ao menos naquele governo.

Tal como a obsolescência programada dos materiais, que surge como estratégia do mercado para que o consumidor seja forçado a adquirir novos modelos do mesmo produto, a balbúrdia programada pode, a cada dia que passa, ser facilmente constatada por pesquisadores e analistas em relação ao momento histórico em que vivemos. A enxurrada de palpites e bobagens foram disseminadas com o claro propósito de confundir as pessoas, no lugar de informá-las, e abrir caminho para um novo paradigma de informação, o das notícias falsas (fake news). 

O ano de 2015 foi o primeiro ano do conveniente atoleiro em que nos meteram. Seis anos não foram suficientes para a balbúrdia encontrar seu fim, ou ser suspensa pelos seus executores, os oportunistas dos logaritmos, os donos do poder enfiados em seus confortáveis (e ocultos) gabinetes, cuidando deste adorado latifúndio de exploração, embora as coisas comecem a ficar um tanto fora de controle.

Não sabemos o que virá nos próximos dois anos, onde muita coisa está prevista para acontecer. As vacinas que não chegam, a pandemia que se instala com mais de 3 mil mortes por dia, os empregos formais que se vão, a carestia que impede o consumo, o mercado indiferente, o desgoverno inconsequente (e não incapaz, pois certamente ele sabe o que significa o agravamento dessa balbúrdia), esse silêncio que ouço do lado de fora, em um domingo ensolarado de Páscoa. 

Nada parece se acertar no momento, porém tudo indica - e isso não é um exercício de futurologia, mas de quem se exauriu em meio a tanta balbúrdia - que ao cabo desses próximos dois anos, fortes emoções estarão em pleno andamento, como a destroçar a situação vigente, mas também a anunciar boas-novas. Nada que, considerando as leis da física e tomado o horizonte de acontecimentos, expresse além de respostas a tanta canalhice e a tanta ignorância tenebrosamente enunciadas.

(atualizado em 05.04.2021)



03 abril 2021

Pelear con Benedetti

 

Mario Benedetti en La Habana

Vamos juntos

 

Con tu puedo y con mi quiero
vamos juntos compañero

compañero te desvela
la misma suerte que a mí
prometiste y prometí
encender esta candela

con tu puedo y con mi quiero
vamos juntos compañero

la muerte mata y escucha
la vida viene después
la unidad que sirve es
la que nos une en la lucha

con tu puedo y con mi quiero
vamos juntos compañero

la historia tañe sonora
su lección como campana
para gozar el mañana
hay que pelear el ahora

con tu puedo y con mi quiero
vamos juntos compañero

ya no somos inocentes
ni en la mala ni en la buena
cada cual en su faena
porque en esto no hay suplentes

con tu puedo y con mi quiero
vamos juntos compañero

algunos cantan victoria
porque el pueblo paga vidas
pero esas muertes queridas
van escribiendo la historia

con tu puedo y con mi quiero
vamos juntos compañero.


(Letras de Emergencia, 1969-1973)



01 abril 2021

O amargo pesadelo


Quadro de Linha Geral, S. Eisenstein

Nada mais trágico do que a consciência perceptiva de um Brasil bruscamente interrompido naquela jornada de 1. de abril de 1964, golpe cívico-militar indecente, estudado e discutido à exaustão. Dali a poucos dias, a máquina devoradora de sensatez se pôs em movimento, e não mais parou de cassar e prender a inteligência brasileira, os políticos, os juízes, os estudantes, os trabalhadores, dobrando-nos sem pejo aos interesses forâneos, e voraz, ao arrancar-nos o direito a sonhar com nossos verdadeiros desígnios de seres livres, no ritmo de nossos próprios passos. O livro de Jorge Ferreira, João Goulart (Civilização Brasileira, 2011), nos oferece um excelente olhar retrospectivo que nos conduz, tragicamente, a esse momento de nossa história, de consequências irreversíveis, como demonstram os desmandos políticos que tiveram lugar a partir de 2016. 

Abaixo um extrato da análise fria de Goulart, diante da consumação dos fatos:

A possibilidade de resistência era nula com a adesão da maioria dos contingentes das Forças Armadas, dos principais governadores, do Congresso Nacional e da imprensa. No entanto, se Jango propusesse a resistência e, no caso de ela se realizar, possivelmente o país enfrentaria uma guerra civil. Setores das Forças Armadas aliados a civis tentariam algum tipo de luta. A intervenção militar norte-americana agravaria ainda mais a crise, com a possível divisão territorial do Brasil. Qualquer tipo de resistência provocaria derramamento de sangue. 'Mas esse sangue a ser derramado', garantiu Jango no exílio, 'seria o de civis', não o de militares. Em sua lógica, 'lobo não come lobo'. (...) Para ele, era inadmissível levar adiante uma luta em que civis morreriam, enquanto os militares se preservariam. Além disso, continuou em sua avaliação, 'Até que ponto poderíamos resistir? Onde obteríamos recursos e o combustível imprescindíveis? Os entreguistas do Brasil já estavam garantidos ao receberem o apoio dos Estados Unidos. Só os civis seriam as grandes vítimas. E esse é um povo maravilhoso, independentemente de sua convicção política. Eu não teria esse direito. Nem gostaria de arcar com essa enorme responsabilidade, que contraria meu foro íntimo'.