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Correções de Regresso a Buganvília |
"Fosse
qual fosse o significado do singular encontro com seu Alberto, Ângelo Domani
não mais desdobrou-se em desconsolo, nem aventou hipóteses mortas. À medida que
retomava seu caminhar para a Britânia, voltou a inteirar-se dos acontecimentos
a sua volta como circunstâncias fortuitas, apreendendo-os em sua intensidade.
Os rumores reverberantes, a alegria das crianças, os sorvetes nas mãos, as
cores das roupas, os jovens de mãos dadas, noite de festividade que o recebia
como o mais um convidado, sem que o referendassem de maneira especial, ou que o
espreitassem como a um culpado, tornava-se apenas um convidado a mais, em um
evento diante da praça que um dia fora toda sua, de passeios deleitosos com os
pais, com os primos, com Ruth.
Acercava-se
da multidão, mirou desinteressado para a esquina próxima no final da rua
Bélgica, onde despontava a praça da fonte. Uma razoável quantidade de almas
comportadas se deliciava com o final de tarde suavemente encoberta, com a
espera do espetáculo. Para Ângelo, o encontro inusitado com seu Alberto
abria-lhe um feixe de expectativas, nada mais do que a imaginação em seus
volteios imponderáveis. Pensou nas palavras cruas de seu Alberto, encetou os
primeiros passos de uma nova caminhada, no sabor dos rumos incertos, Tempo
de recomeçar, tempo de esquecer... O passado em Buganvília remontava de
súbito como um desmundo, como toda referência em seus prazeres e rudezas. Posicionava-se
como uma história sonolenta e ainda não adormecida, e isso ficava cada vez mais
claro ao andar por entre as pessoas e vê-las caminhar em círculos pela praça da
fonte. Nada mais esperado que o fluxo contínuo de sensações o conduzisse à
remissão do passado, confrontando situações dispersas no tempo... Acercava-se,
então, à esquina... quando olhou para o outro lado da rua e teve uma vaga
imagem, sob o manto das penumbras indefinidas de final de tarde, de uma fileira
de casas que se sucedia em um nível mais elevado em relação à rua. A visão
imaginosa identificou estéticas mais modernas de construção, casas de alvenaria
frondosas e arejadas, cada qual prolongando para os fundos quintais de árvores
frutíferas, separados por cercas baixas, Ainda
era possível em Buganvília... A terceira casa estava onde fora em outros
tempos a pensão de dona Madalena... Ângelo aguardou por um breve momento, a
enorme pensão de madeira, os quartos, a cozinha com uma mesa enorme para
atender os hóspedes, como lhe dizia seu pai... Marta estava lá, sua imagem
surgiu de modo voraz, ainda uma vez pela reminiscência erótica, abrigando-se em
seus pensamentos convulsos, desejando desta feita não lhe dar trégua, Venha!...
e avançava com suas curvas
sinuosas pelo corredor, conduzindo Domani ao quarto do fundo, cuja janela
abria-se para o pomar recoberto de folhas secas... Era possível sentir e
ouvir o alvoroço das pessoas dirigindo-se à concentração, mas permanecia
imóvel, preso às reminiscências distorcidas, ungido pelo torpor que pesava sobre
as pernas... a microfonia anunciando os primeiros discursos, a atenção da
pequena Buganvília voltada para o palanque, o amontoado de corpos, Ângelo
olhando para a pensão de dona Madalena... Marta acenava, tinha os cabelos
molhados, as sobrancelhas marcantes, como uma mulher árabe... o quarto com sua
coloração incerta, a cama enorme, a mulher agora envolta nos lençóis, apenas
identificava sua boca movimentar, sem emitir sons... quando por fim ouviu
bruscamente, Não temos mais o que dizer...
Ângelo
foi lançado para a realidade inócua do presente, acompanhou um grupo de
moradores encorpando a pequena multidão aglomerada, já nas proximidades da loja
de seu avô. O apresentador chamava o primeiro dos convidados ilustres a subir
ao palco, o súbito clamor das pessoas presentes, uma salva de aplausos que
ecoou pela praça, um homem baixo, andar célere, subiu e avançou pelo proscênio
e sentou-se em uma das cadeiras disponíveis. O apresentador insistiu para que
falasse algumas palavras... Domani apurou a visão distorcida, teve a impressão
de reconhecê-lo, a luz não ajudava, estava é verdade um pouco longe para
discernir os detalhes, mas... sem dúvida era a silhueta atarracada de seu
avô... então se sobrepôs a voz amplificada, tonitruante, monopolizando a
atenção da imensidão de indivíduos, que a essa altura tomava a maior parte da
esplanada da fonte luminosa, em frente ao palco. A massa inquieta movia-se com
a plasticidade de uma onda, para um lado, para outro, então se aquietava em
meio ao rumor pronunciado, que abafava a voz metálica, e enaltecia, entusiasta,
cada pessoa da comunidade convidada a subir e acomodar-se em uma das cadeiras...
E foi com o segundo nome que Ângelo confirmou seus atormentados presságios,
subiu o homem que lembrava o padre Simphoriano, em seguida... mais pessoas
chamadas, mais nomes conhecidos e desconhecidos, todos aqueles que imaginava
pudessem subir, Átila, a professora Regina... sob silvos, aplausos, gritos de
aclamação, subiram todos os que Ângelo se recordou ter encontrado em sua
peregrinação... as ondas recomeçavam, começavam a durar mais, passaram a
empurrá-lo para mais distante do palco, para os baixios da praça... Subiam os
personagens que identificava das lembranças atribuladas, chegou a vez de dona
Madalena, secundada por ninguém mais que Antonio Rodrigues (e agora era o som
que lhe parecia incerto), que abraçou Alberto e tantos quantos se alinhavam na
fileira dianteira, para virar-se ao público, a quem agradeceu com uma
prolongada reverência aos apupos, indicando que os demais mereciam parte do
reconhecimento do público... até que se elevou ao palco a mulher envelhecida,
solitária, o caminhar capenga, demorado, como se Ruth fosse, até que Rodrigão a
envolvesse em um caloroso abraço, sob os acordes de um tango tocado por uma
orquestra invisível, que bem lembrava Juan D’Arienzo, Garronero, e em seguida, Aguilucho...
Ângelo
se esvaia em sua vã luta, acompanhando de relance cada cena e se debatendo
inutilmente contra a maré humana que não se acalmava, conduzindo-o mansamente
para os confins da praça, de modo decisivo, irrevogável, como se todos
quisessem bani-lo das festividades... Nesse ínterim o prefeito surgiu, com sua
voz prejudicada pelo sistema de som, tecendo palavras gentis aos nobres
cidadãos que compartilhavam com ele o proscênio, ao tempo que os uivos e aplausos
se confundiam, oriundos por todas as partes... Ângelo, em um supremo esforço,
decidiu enfrentar a adversidade inesperada e remar contra a maré, procurando
recuperar uma boa posição. Sua participação parecia condenada a uma observação
fugidia, o espetáculo que desde o princípio o acompanhou e lhe pareceu descartável.
Continuava sem qualquer desejo especial em assistir. Por mais que desejasse
ficar, a multidão não cessava de levá-lo para mais longe. Quando ganhava algum
terreno, o esforço era mantê-lo a todo custo, em meio a um turbilhão de corpos
inquietos. Desviava para um lado, ganhava um metro, conseguiam detê-lo, como se
a refrega se tornasse um acerto de contas entre ele e a cidade e então Ângelo
sucumbia à pressão e recuava, e lutou por um tempo. Viu-se na esplanada em que
se localizavam as mesas de concreto, onde pela manhã vira o jogo de truco e
como outros, subiu em uma delas, ainda livre, para ter uma visão mais nítida do
palco, de onde só escutava as falas do prefeito. Aos poucos, porém, o som
eletrônico foi se perdendo em ondas abafadas e cortadas, que se misturava com a
algazarra das centenas de pessoas que chegavam e conturbavam a cena.... Pouco podia
ver dos semblantes... Insistiu em visualizar os convidados, mas estava
condenado a vê-los desaparecer no mesmo átimo em que surgiram... impressões que,
longe de proporcionar respostas, o enredavam no mistério do imponderável... À
anônima presença, não se oferecia mais do que as imprecisões de um relato
ausente... tristeza e condescendência, em meio ao vagar dos pensamentos. Novos convidados articulavam homenagens, lembranças, lamentos, quando Ângelo voltou-se para o restaurante, no desejo de localizar Maria Eduarda e, em um derradeiro esforço, lançar-lhe um olhar apaixonado.
Insistiu o quanto pôde, mas a visão era obstruída pelos animados espectadores, que
faziam do largo um maciço de corpos e vozes. E recuou ainda mais, para
os confins da praça e mais além...
Ângelo cambaleou e com esforço seguiu para onde ainda era possível, para a lomba desconhecida da Britânia, para outros caminhos menos iluminados e concorridos
Atingiu
o ponto extremo, em que o movimento rareava, permitindo um deslocamento menos dificultoso.
Esfregou o peito, dentro da camisa a carta de Ruth, era o único bem que dispunha,
juntamente com as folhas amarrotadas das anotações, que carregava nos bolsos da calça... Sem bagagem, sem passagem de volta... As
sombras surgiam mais fantasmagóricas, a iluminação escassa brotava menos
intensa dos postes, a vegetação se pronunciava nos terrenos livres, em matagais
mais extensos que penetravam a noite. Casais imberbes se insinuavam para um momento mais íntimo, nas saliências mais
ocultas, enquanto jovens desgarrados bebiam e extravasavam seus gestos sob as
luminárias públicas. Projetava-se aquele som melancólico que se anuncia depois
dos encontros, após a intensidade das comemorações. Emergia uma brisa sem
forças, que lambia as vestes e abrandava logo em seguida. Nenhum automóvel
ousava circular, quebrando o tempo libidinoso dos pedestres que se escasseavam.
Ângelo passou diante do que, em tempos idos, fora a insípida estação de ônibus,
agora transformada em um posto de gasolina. Prosseguiu pelo meio da avenida e
um esbarrão inesperado desviou sua atenção para a entrada de um terreno baldio,
com uma roda de pessoas e Maria Eduarda em animada conversa... Ângelo não
permaneceu mais do que o suficiente, talvez para uma despedida silente, e
continuou, para aqueles lados que aprofundavam a noite, a simular o
prosseguimento de seu destino..."
(Capítulo Trinta e oito do romance inédito Regresso a Buganvília)