01 abril 2020

Viagem à roda de meu quarto


A morte e a morte de Quincas Berro D'água, por Carybé


Creio que já são duas semanas que estamos em confinamento, não tenho o tempo exato. Desse isolamento inesperado e bem consolidado por grande parte do país, não é possível dizer o que acontecerá depois. Todas as atividades culturais e esportivas foram suspensas, espaços de lazer como os shoppings foram fechados, assim como a maior parte da atividade produtiva, exceto os serviços essenciais, como supermercados, postos de gasolina, farmácias. Os hospitais se preparam para o pico da pandemia, que deve nos alcançar em abril e maio. Até hoje já são 201 mortes confirmadas e mais de 5.700 pessoas com a Covid-19. Enquanto os governadores em inédita coesão procuram tomar medidas para mitigar a expansão da doença, o patético capitão-presidente segue em caminho oposto, desqualificando todos os esforços nesse sentido. Ele segue na campanha de convencer as pessoas a deixarem o isolamento e retomar o trabalho, pensando nos índices da economia. Há pouco soava a sinfonia de todas as noites, o toque das panelas nas janelas da redondeza, que se reproduz simultaneamente em todas as cidades do país, mostrando a indignação da população contra esse celerado. Também não é possível antecipar o desfecho que o crescente descontentamento popular irá desencadear e nem mesmo mensurar qual a sua amplitude daqui a, digamos, dois meses.

Nos Estados Unidos são previstas 100.000 mortes em uma estimativa otimista. No Reino Unido, já são 25.000 infectados e 1.789 mortes. Na França, 499 mortes nas últimas 24 horas. Na Itália já são mais de 12.000 falecidos e na Espanha, 8.200, números que seguem aumentando. O vírus atinge de modo mais brutal as pessoas com quadro de doença pré-existentes, principalmente no aparelho respiratório, o que não significa dizer as mais velhas. Conversava com meu amigo Sérgio e ele se dizia parte do grupo de risco por seus problemas no ano passado com o coração. A crise de leitos hospitalares se amplia, as tardias medidas de quarentena cobram o preço do descaso, com doloroso destaque aos governos da Itália, Espanha e Estados Unidos, ameaçando um defaut no sistema de saúde. 

De um modo geral é possível observar uma forte adesão da população às medidas de confinamento caseiro. Aqui na região da Paulista, e falo do meu pedaço, considerando a rua Augusta e ruas adjacentes, todo o comércio e áreas de serviços estão fechados, da padaria Bella Paulista ao restaurante Atenas, passando pelo Center 3. Faço minhas compras principalmente no mercado a duas quadras de casa e essa é a exceção de meu isolamento. Hoje foi dia de pagar as contas e comprar legumes e água. Tenho feito minhas comidinhas, desfrutando desse momento criativo. Uma vez a cada duas semanas fazemos a reunião do grupo de pesquisa, agora à distância. Já ocorreu uma, a próxima, sexta-feira. Os amigos entram em contato vez ou outra por imagem e todos os dias converso com Moniquinha. Com meus pais e meus irmãos, falo de quando em quando, estão bem e tranquilos. O isolamento é maior ou menor de acordo com a predisposição das pessoas em ficarem segregadas. 

Assim preservo a saúde de modo seguro, minha e dos outros. Tenho o espaço da minha casa para circular sem preocupação. Ao meu lado, uma pequena pilha de livros selecionados que me acompanham daqui para lá, de lá para cá, Histórias Extraordinárias de Poe; A Dimensão da Noite, de Lafetá; O Aleph, de Borges; Moby Dick, de Melville; Aulas de Literatura, de Cortázar; o poema dramático Manfredo, de Byron. Isso é hoje, talvez amanhã, mas nada garante que os livros serão lidos, nem que outros não possam ser incluídos de supetão. Quero ainda enviar meu romance para outro concurso mais, prêmio Leya, de Portugal, arrumar a casa e deixá-la saborosamente habitável, preparar minha comida e descansar sempre que possível. Lembrando Xavier de Maistre, essa tem sido a vida à roda de meu quarto, um mundo de contínuas surpresas.



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