|
Eu e dona Neide, Ipuã, 1983
|
Costumo
dizer que minha quarentena se iniciou depois que me dispensaram das minhas
aulas, de lá para cá meus contatos se restringiram a poucos amigos, à minha família
e à Mônica. Mesmo as atividades práticas desapareceram, salvo as reuniões do
grupo de pesquisa. É como se estivesse em uma aposentadoria forçada, que me
impedisse de aderir a uma atividade profissional junto a pessoas. Como disse,
suporto bem essa situação e nestes dias de restrição ao meu apartamento,
desfruto de filmes, de literatura e escritura. Também preparo minha alimentação,
que em algumas ocasiões torna-se em agradável ritual, tomando-me umas duas
horas no almoço e um pouco menos no jantar. Os problemas em meu pé direito parecem ter desaparecido com o repouso e a boa alimentação e meu sono tem sido
profundo, sem percalços.
Tudo
muito diferente de outros confinamentos que passei na vida. O mais longo e
difícil foi sem dúvida o que vivenciei em Ipuã, no início dos anos 1980.
Lembro que mantinha um contato
via malote com a biblioteca da Caixa e pude usufruir dos serviços de
correspondência e ler alguma coisa. Uma das leituras que me marcaram foi A Cerimônia de Adeus, de Simone de
Beauvoir, já naquele momento ensaiava minhas leituras existencialistas, e mais
nada.
Passava
cinco dias trabalhando, tendo as noites livres. Morava em uma edícula muito
simples, e me recordo do choque de meu pai quando lá esteve para me
trazer, junto com minhas tralhas, de modo definitivo para São Paulo. Era um
conjugado de dois quartos, que se abria para uma varanda onde tínhamos mesa e
geladeira. A cidadezinha possuía uma escassez completa de imóveis para alugar, assim que tive sorte em conseguir esse pequeno espaço. Dividia meu quarto com um outro funcionário da Caixa e dormia em um
colchonete. A janela dava para um quintal malcuidado e não muito extenso, que
jamais foi utilizado. Era um recanto perdido, numa cidade perdida.
Esse conjunto quintal e edícula
constituía o fundo da casa grande, ocupada por dona Neide e seus dois filhos,
gente muito humilde, que desfrutavam do imóvel por uma benesse de um parente
que não me lembro qual. Pagávamos uma ninharia de aluguel e também pelas
refeições. Dona Neide era semianalfabeta, na ocasião por volta dos quarenta
anos, mas parecia bem mais velha, o corpo desgastado pelo sofrimento da vida. Seus
filhos, na faixa dos vinte anos, eram boias-frias. Toda manhã, por volta das
quatro horas, ouvia o ruído da mulher preparando a marmita dos filhos, que
saíam antes do sol nascer e voltavam quando ele já tinha se posto.
Não
havia disponibilidade de emprego. Vivíamos um período de crise
econômica no Brasil e além do comércio, Ipuã oferecia para os jovens duas possibilidades, ou
trabalhar no corte de cana ou no frigorífico, localizado nos baixios do
lugarejo. Uma tristeza. O quartinho adjacente ao nosso era ocupado por um jovem
que trabalhava no corte de carnes, um serviço estafante, que se iniciava
igualmente de madrugada e se encerrava na hora do almoço. Paulinho era seu
nome, igualmente semianalfabeto, despossuído tanto de posses quanto de sonhos.
Dele guardo a imagem de uma magreza famélica e o amor por Zé Ramalho. Em pouco tempo iria
embora e seu lugar seria ocupado por um senhor, seu Agnaldo, vindo do fundão
das Minas Gerais, que nos contava histórias sofridas de sua terra.
Havia
uma dor profunda em viver nesse rincão destituído de alegrias e prazeres. Como
disse, o lugar era completamente isolado. A cidade mais próxima, São Joaquim,
ficava a 30 km e Ribeirão Preto, meu oásis, a 70km. As comunicações por
telefone com o mundo exterior, no início, só eram possíveis via telefonista. Fazia-se
o pedido para falar com São Paulo e esperava-se. A única empresa de ônibus que
fazia a ligação para fora, e esse fora era São Joaquim, tinha dois veículos, um
que ia enquanto o outro voltava.
O último
ônibus que partia da cidade a cada dia era o das 17h, o que transformava
minhas sextas-feiras em uma corrida da morte. Tínhamos de fechar a agência e
terminar o serviço em menos de uma hora, se quiséssemos sair da cidade.
Fazíamos com muito gosto, eu e outro colega de trabalho, já com as
bagagens prontas na agência. Dali saíamos correndo quatro ou cinco quarteirões
e chegávamos na parada de ônibus, para tomar o derradeiro passaporte para a
liberdade do final de semana.
Em
São Joaquim, com um pouco de sorte, conseguia pegar o ônibus das 18h até
Ribeirão Preto e com a alegria na alma soltava-me em uma viagem de hora e
meia. Já em Ribeirão, dava início à retomada da vida cultural, circulava pela
cidade, jantava em alguma lanchonete e assistia a um filme no cinema de arte. Precisava
esperar até a meia-noite para tomar o Cometa que me levaria a São Paulo, isso
porque não tinha como chegar antes do metrô abrir.
Assim, tudo era devidamente
programado para estar na minha cidade antes do alvorecer, para que pudesse
aproveitar ao máximo o fim de semana. A noite de domingo anunciava o fim da
liberdade concedida e o regresso se assemelhava à retomada contínua de um
martírio. O mais importante, talvez, foi que consegui realizar todas as etapas
desse confinamento com galhardia, serenidade e uma pitada de bom-humor,
considerando que um dia esse desconforto chegaria ao fim.
(atualizado em 03.06.2020)