04 fevereiro 2020

A Cultura e o 'bolchevismo cultural', por Klaus Mann


De quando em quando retomo um pequeno livro de um autor quase desconhecido por nós brasileiros, Klaus Mann, para apreciar o estilo da escrita e sua inquietude diante da opressão nacional-socialista. O opúsculo, traduzido diretamente do alemão por Pedro Saraiva, chama-se Contra a Barbárie - um alerta para os nossos dias, e possui impressionante relação com os abusos autoritários que renascem pelo mundo e, em especial, aqui no Brasil. 

Ainda que Klaus Mann descreva a virulência do modo de ser nacional-socialista em seus desprezíveis propósitos, trata-se de um modelo de autoritarismo que, instalado nos anos 1930 na Alemanha, continua exercendo fascínio a um punhado de irresponsáveis que hoje ocupa o poder neste país, como pudemos ver recentemente no comportamento de um patético secretário da cultura.

Sem mais delongas, gostaria de reproduzir uma parte do primeiro texto do livrinho, Cultura e bolchevismo cultural, escrito em Paris no ano de 1933. Chamo a atenção para a quantidade de pontos que assemelham as práticas políticas em desenvolvimento no desgoverno de Bolsonaro às orientações políticas disseminadas logo no início da triste aventura nazista.

Cultura e Bolchevismo cultural
por Klaus Mann

"A expressão 'bolchevismo cultural' é o instrumento de que se servem as forças que hoje dominam a Alemanha para sufocar todas as produções intelectuais que se não põem ao serviço das suas tendências políticas. (...) Para se ser bolchevique cultural não tem, de resto, que se ter nenhuma relação com o bolchevismo, normalmente nem se tem nenhuma. O que é necessário é estar relacionado com a cultura, a qual é, por si própria, um motivo de suspeita. (...) 

Mais importante do que tentar compreender o conceito de 'bolchevismo cultural', que é grotesco em consequência da sua total imprecisão, é determinar todos os valores culturais que ele já 'destruiu' (...). Limitar-nos-emos ao domínio puramente cultural. Nesta matéria, os novos senhores parecem julgar-se muito habilitados, ou então, é a sua consciência sobre ela que ainda é mais insensível do que nós julgávamos. (...)

Um dos domínios em que se intervém (...) é, evidentemente, o da educação da juventude. É essencial não transmitir aos jovens cérebros e corações senão o conhecimento dos ideais a que hoje se chama 'novos' - de forma um tanto paradoxal porque, na realidade, são os mais antigos. (...) 

O destino das grandes editoras liberais ou de esquerda parece ainda não estar completamente decidido. Constitui excesso de otimismo supor que vão poder continuar a existir. Não são, pura e simplesmente, interditas, mas vão ser lentamente asfixiadas, o que não é melhor: os livreiros boicotarão a sua produção, se é que não o estão a fazer. (...)

Já não existe imprensa alemã, toda a liberdade de expressão, mesmo a mais modesta, é reprimida com um radicalismo notável (...). A grande imprensa liberal está vendida ou, se isso ainda não tiver acontecido, é obrigada a tocar a trombeta do fascismo. (...) Seja pelo que for, sucumbiu sem oferecer qualquer tipo de resistência a uma morte pouco gloriosa e merecida. Os jornais do governo mentem desde o princípio. Não há nenhum meio de informar as pessoas. (...)

A rádio, que já não brilhava pelo seu progressismo, tornou-se o instrumento de propaganda do regime. (...) O cinema é outro instrumento de propaganda muito importante. (...) Parece que querem limitar a produção a operetas e panfletos nacionalistas. Quando Goebbels citou - provavelmente por inadvertência - O encouraçado Potemkim entre os filmes que podiam servir de modelo, esta afirmação escandalosa foi subtraída à notícia do discurso (posteriormente publicado). (...)

Não se recua sequer perante a profanação da música (...). O repertório musical muda ao mesmo tempo que os maestros. Os compositores considerados bolcheviques culturais (...) deixaram de ser apresentados. (...) O que passa com a pintura não é, evidentemente, diferente do que se passa nos outros domínios culturais. Também ali a palavra de ordem é: fim dos experimentalismos, regresso aos bons velhos tempos (...). A Alemanha que renasce tem um forte pendor para o kitsch. (...)

Vê-se que nada foi esquecido. Podíamos continuar a fazer esta triste lista, da dança e da fotografia às artes decorativas e à cultura física. A cultura e a política têm que ser 'dominadas' para usar outra expressão favorita da nova Alemanha. (...) Resta saber quem é que vai sofrer com isso a longo prazo. Se não estamos em erro, vai ser a própria Alemanha. Porque, como todos sabemos, é mais fácil destruir do que construir. 

Somos extremamente céticos quanto aos novos valores. Porque neste caso não é 'um' espírito que luta contra outro espírito, é o antiespírito que luta contra o espírito e, a menos que se dê um milagre, é ele que vai ganhar."   


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