31 dezembro 2018

Caldo frenético de tensões

Nada parece abatê-las!


Último texto do ano. Não há o que comemorar, embora seja importante realçar que passamos incólumes aos problemas e seguimos dispostos a enfrentar os desafios que se sobrepõem. No começo foi o pai da Mônica que operou, depois perdi minhas aulas e no final, a eleição do capitão pistoleiro para presidente, amparado por grande bancada parlamentar e meu câncer de próstata. Começo o ano de 2019 em cirurgia e mesmo com a desgraça política prometendo ser prolongada, a dura luta no campo social irá se colocar, confrontando a ignomínia produzida por personagens nefastas, que solaparam a compreensão dos fatos e alcançaram o poder. 

Tornamo-nos um caldo frenético de tensões que se cozinha de modo vulgar, e esse caldeirão resulta na evidência empírica da ação de grupos neoliberais, que se prestam a executar com maestria sua cartilha. Encontraram aqui o acolhimento no discurso neo-pentecostal, no capital dos grupos financeiros, na reformulação trabalhista dos grupos empresariais, na notícia vendida como mercadoria pelas mídias corporativas, no faz-de-conta das decisões jurídicas do judiciário. Por fora, ressurgiram das cinzas velhos agentes políticos, os militares de pijama, que nada de novo poderão acrescentar. E ao fundo, o grande populacho, ameno, desinteressado, sem cultura política. 

Como disse Pepe Mujica, antes de conquistar o patamar da cidadania, nosso povo desfrutou a condição de consumidor. Diante da desorganização política, o capitão eleito terá algum tempo para implementar suas superadas diretrizes políticas, ainda sob a contemporização popular. Em seis meses poderá reeditar a radicalidade das transformações sócio-político-econômica-culturais que o fascismo alemão realizou no primeiro semestre de 1933, praticamente sem oposição. 

O problema é que não haverá uma guerra para deter a multiplicação da bestialidade bolsonárica e assim, o nosso drama não terminará nos escombros dos bombardeios de saturação, mas na fatídica miséria de nossa população exangue. Resta saber se teremos capacidade de reconstituir o Estado democrático de direito. 


22 dezembro 2018

Como se não soubéssemos



Muitos dos que votaram no capitão pistoleiro acreditaram promover com este gesto a mudança na prática política. Os que têm uma pequena compreensão da realidade política, perceberam o engodo a que se submeteram. Não se promovem mudanças radicais baseado em ideias retrógradas, preconceituosas e que ganham vida subordinadas a indivíduos da cepa da família Bolsonaro. 

Serão tempos difíceis, um desses momentos na história humana em que se subvertem todos os paradigmas da ciência política. Circunstância similar ocorreu nos anos 1930, com o advento do fascismo na Europa, onde lideranças incompatíveis com o espírito da democracia, promoveram mudanças radicais na organização da estrutura social, política, cultural, no afã de se erigir o novo homem, massificado, submetido a novos valores e novas crenças, impondo-lhe uma liderança, um guia que os conduziria a uma vida sem as práticas corruptas, viciosas da velha sociedade. 

O novo se anunciava com roupagens truculentas dissipando a liberdade individual, condenada por proporcionar o comportamento vulgar, sem a vontade que mobilizava o povo no sentido de seus verdadeiros desígnios. O novo ressurge e aclama um novo "mito", que deixando sua inanição de quase trinta anos em casas legislativas, pretende mudar tudo que está aí: renovar a política parlamentar, eliminar as ideologias perniciosas, favorecer a competição empreendedora, com deus acima de todos.

É provável que uma guerra mundial, desta feita, não seja o caminho da redenção democrática. Padeceremos, sobretudo na América Latina, onde essa transformação equivocada se estabelece entranhada na sociedade civil, por anos a fio. Não visualizo no horizonte qual será o graveto que irá quebrar as costas do camelo, mas não tenho dúvidas de que essa onda sem sustentação epistemológica irá ruir tão ruidosamente como os fascismos dos anos 1930. 

Os pequenos Francos e Mussolinis fraquejarão, não por si, mas sob o empuxo vital das mobilizações sociais, que a princípio poderão carecer de força, organização, propósitos claramente definidos, porém, a cadeia de significados produzida no rastilho da vontade popular culminará nos movimentos que, ao fim e ao cabo, saberão lidar com o Leviatã privatista.

É o que nos basta para acreditarmos nas lutas que estão por principiar.


15 dezembro 2018

Dominação e submissão

Dominance... submission... radios appear
New Year's eve, it was the final barrier
Dominance... submission... radios appear
We took you up and put you in the back seat

(Dominance and submission, Blue Öyster Cult)


Não são boas as notícias que apreendemos na vida cotidiana. Grande parcela da sociedade, mais do que nunca, submerge em uma letargia onde sequer o péssimo nível de governabilidade que se constrói, aliado a demolição do Estado democrático de direito, não é capaz de insuflar indignação. Persiste envolta no que parece um desejo irresponsável de mudanças, sem refletir na mediocridade das escolhas. Deparo tristemente com a absoluta falta de análise crítica, resultado de uma formação educacional que nada explica, que nada tensiona.

A vulgaridade incorpora-se ao relacionamento diário com as redes sociais, que há dez anos prometia – e talvez ainda prometa – possibilidades produtivas de práxis social. Isoladas na individualidade ou em pequenos grupos, as pessoas navegam ao sabor da profusão insensata de opiniões de outros indivíduos isolados ou pertencentes aos mesmos grupos. As bolhas comunicativas não constroem ideias, mas entorpecem a criatividade e a consciência de mundo.

Estamos diante de um quadro social de mudanças, sim, mas em direção de um “bem-estar colonial”, onde do ponto de vista externo, a nação se submete em seus desígnios à nação dominante, permitindo-nos uma sobrevivência mansa, “segura” e voltada para projetos abjetos. E do ponto de vista interno, prevalece a liberdade de ação de dirigentes medíocres, que uma vez aceitando as orientações estratégicas de submissão externa, têm o poder e a garantia de estabelecerem uma governança autoritária, voltada para os interesses pessoais. 

Para a grande massa, sobrevém a paulada ideológica: restrição nos direitos individuais, controlada por uma moral neoliberal que valida toda forma concorrencial e no nosso caso, abre o flanco para o controle social a partir dos valores pautados pela mais retrógrada moral cristã.     


13 dezembro 2018

O senhor Virgílio


Puerto Madero, Buenos Aires, 2016


De todos modos, aquella vertiginosa huida de las cosas y de los seres, del suelo y del cielo, le daba una suerte de poder.
Mario Benedetti, La muerte


O senhor Virgílio já havia considerado muitas hipóteses em sua escritura ficcional. Observou em inúmeros contos os diversos ângulos da vida e da morte, os transes psicológicos, personagens marcados pela serenidade, por gestos mensurados que os conduzia inapelavelmente à morte, ou na melhor das hipóteses, até serem superados ou descaracterizados pelos fatos. 

E chegou o dia em que foi ele mesmo surpreendido pela finitude anunciada por seu médico. Foi uma simples leitura dos exames realizados, nenhum drama, apenas um comentário simples e direto. O senhor Virgílio ouviu até o fim, não tinha perguntas, não quis saber do tempo restante, apenas considerou a possibilidade de sair logo dali, passar pelo balcão de atendimento, tomar o elevador e ganhar as ruas.

Uma vez sob a luz da tarde, considerou vagamente as variantes para compor o restante dos dias. Não se incomodou em considerar com mais propriedade o tema recorrente de seus textos existenciais, a perda da consciência. Houve tempo em que a perda momentânea diante do sono o incomodava, deixando-o ansioso em sua vigília até que o alvorecer o rendia suavemente, conduzindo-o à suspensão dos pensamentos. 

Ao despertar horas mais tarde, se dava conta do alívio reconfortante em retornar, quando então não sentia qualquer incômodo em permitir suas reflexões amortecerem e mais uma vez suspender o juízo do mundo. Fora sempre assim, nas pequenas cirurgias que realizou, nas manhãs sonolentas que retornava a si. A passagem de uma ausência de consciência era, por fim, superada com satisfação.

Ocorre que agora se colocava diante do drama profundo da vida, o fim absoluto da consciência em um derradeiro sopro de existência. Caminhando ao sabor do acaso, constatava o ritmo sonoro com apreensão cuidadosa, a fala das pessoas, sons e ruídos articulados ao esforço pessoal de cada um e que perdia o sentido de urgência. 

As imagens se processavam e aos poucos se distorciam em si mesmas, dissolvendo o valor das coisas. O senhor Virgílio apagava-se diante dos códigos urbanos, alimentando delírios imprecisos. Circulou por tempo indefinido, esquivando-se fragilmente de um mundo conhecido e alheio a suas novas demandas, que não mais reconheciam perguntas ou respostas.


04 dezembro 2018

Duros embates no horizonte

Foro del Pensamiento Crítico - Clacso 2018, BsAs


Sem dúvida os desdobramentos da política em nosso tempo anunciam perspectivas sombrias, não apenas no Brasil, como em tantas outras partes do mundo. Ontem em eleições parlamentares da Andaluzia, a governança de esquerda (PSOE) de quase 40 anos ficou ameaçada pelo avanço dos partidos conservadores, mais especificamente de um, o Vox, radical de direita, xenófobo, que teve um substancioso avanço, juntamente com o Cambiemos.


No Brasil, a desgraça apenas se anuncia em doses homeopáticas, definindo um horizonte cinzento e pouco auspicioso para as diversidades culturais, para os movimentos sociais, para a economia como um todo. O jogo de cena se desenha com os apoios desavergonhados de jornalistas da mídia corporativa representando seus donos, em coberturas que mostram o capitão presidente de modo incólume, em alegria quase entusiástica. As análises críticas já estavam ausentes, o que se vê agora é a indisfarçável submissão que transforma meros e muitas vezes ignóbeis mortais em mitos.


Será uma travessia difícil, mas não estou pessimista com o cenário adverso. Quero crer que essa onda de retrocessos não se sustenta, não será capaz de fazer desaparecer as conquistas sociais tão duramente alcançadas, seja aqui ou na Europa. Se somos alvos de uma ação concatenada, muito bem organizada, oriunda de grupos corporativos transnacionais – incluindo aqui o capital financeiro – em conexão com o atraso atávico dos grupos de poder locais, é precisamente neste momento que nós do pensamento crítico temos de nos preparar para reagir de maneira inteligente, com o fim de rechaçar o obscurantismo com propostas e ações consistentes.


Estes ciclos de intolerância mesclados com brutalidade vão e veem na história recente da humanidade. Com as tecnologias comunicacionais avançadas, as respostas necessitam rapidez para sua eficácia. Em nosso caso, respostas que ocorram neste período de quatro anos, para que não comprometa a sobrevida de nossa diversidade cultural e o que resta de nossa autonomia intelectual.  


A ponta de lança conservadora encontra respaldo nos poderosos aportes financeiros; sua ilustração estará pautada pelas agências publicitárias, que já sintonizam suas peças com o discurso do capitão presidente de que voltaremos cinquenta anos em nossas práticas e costumes. A organização social terá de se manifestar em seus mais variados formatos e conteúdos, não podemos nos ausentar, não podemos nos resignar.