Eduardo Lima, Família Silva
Uma série de coisas ficam claras com os desdobramentos políticos
nos últimos dois anos no Brasil, a partir do golpe institucional que nos leva
gradualmente à beira do abismo. A expansão metódica dos conceitos liberais na
economia, longe de alcançar resultados, conduz a uma vertiginosa concentração
de renda, com efeitos sociais previsíveis a médio prazo. A ideia corporativa de
gestão prevalece nos altos escalões econômicos e avança no
aprendizado acadêmico, como o único caminho para o sucesso individual. Com
isso, o pensamento crítico social perde espaço, e mais grave, torna-se um fardo
para que a engrenagem da exploração do trabalho prevaleça sem contestação.
No plano jurídico, vimos anteontem o supremo tribunal federal
(assim mesmo, em letras minúsculas) confirmar seu aval à terceirização
irrestrita, vale dizer, à precarização irrestrita do trabalho. E ontem, no
aniversário de dois anos do lamentável impeachment de Dilma Rousseff, que a
cada dia se imprime na história como um ato imaginado e perpetrado pelas elites
políticas e econômicas em conluio com interesses forâneos - que na época
convencionou-se chamar de "ponte para o futuro" - o tribunal superior
eleitoral (também em minúsculas) decidiu pela impugnação da candidatura de
Lula. Não há mais qualquer escrúpulo da nossa famigerada elite, originária nas
classes senhoriais escravocratas e que perduram os modos e costumes, agora
mantenedoras não do escravismo, mas do precariado.
Para onde quer que lancemos um olhar analítico, percebemos a
degradação dos direitos. Submetida a uma ordem a se investigar sua real
amplitude, as instituições que deveriam zelar pelo bom funcionamento da
sociedade, tornam-se instrumentos de ampliação do controle social pelo ideário
corporativo. As salvaguardas morais foram ou são paulatinamente implodidas, e o
que nos resta é uma luta silenciosa e inglória contra esse monstro invisível,
que leva de roldão o sentido de nação. Para completar, o cinismo combinado com
desfaçatez da mídia patronal, em marcha acelerada ao ocaso, e que no desejo de
salvaguardar algum poder, abre mão do papel social de informar para assumir um
esdrúxulo comportamento servil, pautando a rapinagem do governo Temer.
É como se o poder econômico sufocasse em uma gigantesca câmara
de gás as classes menos favorecidas da sociedade, escapando do caos produzido
com seus helicópteros, sem o menor contato com o drama social. A Argentina
segue seu calvário sob as mãos irresponsáveis do governo Macri, com a economia em
desintegração, quase insolvente, agora praticamente entregue ao beneplácito do
FMI. O sentimento entre os círculos responsáveis da sociedade é que mais dia
menos dia o default se estabelecerá, em circunstâncias próximas ao que ocorreu
em dezembro de 2001. Os primeiros casos de saques a
supermercados começam a corroer a ordem social em seu impulso mais primitivo, a
luta por alimento.
Penso na patética contribuição que as hordas dominantes
pretendam com suas políticas econômicas, aversas à taxação de suas riquezas, na
forma de impostos. Não significa com isso eliminar os ricos, mas fazê-los
contribuir na proporção de suas posses, em uma sociedade profundamente desigual,
em que os mais pobres são fortemente punidos pela restrição aos direitos e
segregados em sua atávica condição de párias, condenados como diz David Graeber
aos empregos
de merda. No final das contas, condenados a não ter tempo para poder
refletir e imaginar.
Mas cinismo e desfaçatez parecem moedas vencidas no prosseguimento do avanço neoliberal. A sociedade de Monte Pelèrin evolui a passos largos expandindo seus think tanks e assumindo postos-chave nas instituições de poder, os agentes que implementam o liberalismo como princípio da organização social, como propõe von Mises. As empresas assumem o lobby político e o pentágono (com minúscula) a segurança militar, o que faz com que privatização, redução de impostos e eliminação do Estado do bem-estar social deixem de ser mera abstração elaborada em uma montanha para se disseminar como a única opção econômica. Esses agentes implementadores do liberalismo, seres subservientes e "motivados", não se restringem a patifes corruptíveis. Tornam-se, pelo adestramento sofisticado, em seres ideologicamente opositores à concepção do Estado do bem-estar social, que os coloca como representantes de uma nova ordem a serviço da "libertação do indivíduo". Mais que tudo, incorporam com determinação o desafio de acabar com os comunistas.
Não é difícil imaginar como esse trabalho ideológico se impõe montanha abaixo, rumo às planícies dos descamisados. Pela sedução à "livre iniciativa", pelo adestramento (retomo esse termo, aplicado ao treinamento de animais) educacional, pelos "modernos" conceitos de gestão e liderança disseminados nas empresas, pelo estímulo ao empreendedorismo individual, a prática dos usos e costumes neoliberais forma convicção quase inquebrantável no subconsciente das pessoas, que não mais encontra formas de resistir, mas a aceitar de maneira escarrada, sem peios, que "os ricos devem enriquecer, pois isso é melhor para todos".
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