01 setembro 2018

O que aparentemente nos resta

Eduardo Lima, Família Silva 

Uma série de coisas ficam claras com os desdobramentos políticos nos últimos dois anos no Brasil, a partir do golpe institucional que nos leva gradualmente à beira do abismo. A expansão metódica dos conceitos liberais na economia, longe de alcançar resultados, conduz a uma vertiginosa concentração de renda, com efeitos sociais previsíveis a médio prazo. A ideia corporativa de gestão prevalece nos altos escalões econômicos e avança no aprendizado acadêmico, como o único caminho para o sucesso individual. Com isso, o pensamento crítico social perde espaço, e mais grave, torna-se um fardo para que a engrenagem da exploração do trabalho prevaleça sem contestação.

No plano jurídico, vimos anteontem o supremo tribunal federal (assim mesmo, em letras minúsculas) confirmar seu aval à terceirização irrestrita, vale dizer, à precarização irrestrita do trabalho. E ontem, no aniversário de dois anos do lamentável impeachment de Dilma Rousseff, que a cada dia se imprime na história como um ato imaginado e perpetrado pelas elites políticas e econômicas em conluio com interesses forâneos - que na época convencionou-se chamar de "ponte para o futuro" - o tribunal superior eleitoral (também em minúsculas) decidiu pela impugnação da candidatura de Lula. Não há mais qualquer escrúpulo da nossa famigerada elite, originária nas classes senhoriais escravocratas e que perduram os modos e costumes, agora mantenedoras não do escravismo, mas do precariado.

Para onde quer que lancemos um olhar analítico, percebemos a degradação dos direitos. Submetida a uma ordem a se investigar sua real amplitude, as instituições que deveriam zelar pelo bom funcionamento da sociedade, tornam-se instrumentos de ampliação do controle social pelo ideário corporativo. As salvaguardas morais foram ou são paulatinamente implodidas, e o que nos resta é uma luta silenciosa e inglória contra esse monstro invisível, que leva de roldão o sentido de nação. Para completar, o cinismo combinado com desfaçatez da mídia patronal, em marcha acelerada ao ocaso, e que no desejo de salvaguardar algum poder, abre mão do papel social de informar para assumir um esdrúxulo comportamento servil, pautando a rapinagem do governo Temer.

É como se o poder econômico sufocasse em uma gigantesca câmara de gás as classes menos favorecidas da sociedade, escapando do caos produzido com seus helicópteros, sem o menor contato com o drama social. A Argentina segue seu calvário sob as mãos irresponsáveis do governo Macri, com a economia em desintegração, quase insolvente, agora praticamente entregue ao beneplácito do FMI. O sentimento entre os círculos responsáveis da sociedade é que mais dia menos dia o default se estabelecerá, em circunstâncias próximas ao que ocorreu em dezembro de 2001. Os primeiros casos de saques a supermercados começam a corroer a ordem social em seu impulso mais primitivo, a luta por alimento.

Penso na patética contribuição que as hordas dominantes pretendam com suas políticas econômicas, aversas à taxação de suas riquezas, na forma de impostos. Não significa com isso eliminar os ricos, mas fazê-los contribuir na proporção de suas posses, em uma sociedade profundamente desigual, em que os mais pobres são fortemente punidos pela restrição aos direitos e segregados em sua atávica condição de párias, condenados como diz David Graeber aos empregos de merda. No final das contas, condenados a não ter tempo para poder refletir e imaginar.  

Mas cinismo e desfaçatez parecem moedas vencidas no prosseguimento do avanço neoliberal. A sociedade de Monte Pelèrin evolui a passos largos expandindo seus think tanks e assumindo postos-chave nas instituições de poder, os agentes que implementam o liberalismo como princípio da organização social, como propõe von Mises. As empresas assumem o lobby político e o pentágono (com minúscula) a segurança militar, o que faz com que privatização, redução de impostos e eliminação do Estado do bem-estar social deixem de ser mera abstração elaborada em uma montanha para se disseminar como a única opção econômica. Esses agentes implementadores do liberalismo, seres subservientes e "motivados", não se restringem a patifes corruptíveis. Tornam-se, pelo adestramento sofisticado, em seres ideologicamente opositores à concepção do Estado do bem-estar social, que os coloca como representantes de uma nova ordem a serviço da "libertação do indivíduo". Mais que tudo, incorporam com determinação o desafio de acabar com os comunistas.

Não é difícil imaginar como esse trabalho ideológico se impõe montanha abaixo, rumo às planícies dos descamisados. Pela sedução à "livre iniciativa", pelo adestramento (retomo esse termo, aplicado ao treinamento de animais) educacional, pelos "modernos" conceitos de gestão e liderança disseminados nas empresas, pelo estímulo ao empreendedorismo individual, a prática dos usos e costumes neoliberais forma convicção quase inquebrantável no subconsciente das pessoas, que não mais encontra formas de resistir, mas a aceitar de maneira escarrada, sem peios, que "os ricos devem enriquecer, pois isso é melhor para todos".


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