27 maio 2018

Reminiscências em tempos de embate político


Aconteceu algo inusitado, pero muy simpático! no ônibus que tomo entre minha casa e a altura da Augusta em que fica a cafeteria que frequento. Quando subi, um senhor me vê com os livros e pergunta o que estudo, se sou professor. Avança nos preâmbulos e sugere uma conversa crítica sobre o papel da Grécia na Europa. Tenho paciência e sem entrar em um debate abrasivo, ofereço uma contra-argumentação, discorrendo sobre cada reprodução midiática que me apresenta. 

Perto do ponto, peço licença, cumprimento-o e me afasto para descer. Vejo então um cidadão negro, idoso, que me sorri, apontando a cabeça com o dedo indicador, como a dizer "saiu-se bem!"... Certamente ouviu a conversa e apreciou o modo com que denunciei o que foi feito da Grécia e de todos os governos que afrontam os sistema financeiro. 

De fato, foi muito agradável observar o meu interlocutor aos poucos ceder na sua voragem em jorrar desinformação midiática. E melhor ainda ver os olhinhos sábios e brilhantes do senhor negro. Ao sair, segurei em sua mão, também silenciosamente, como um gesto de agradecimento.

Esse olhar que jamais reencontrarei me traz a lembrança de outros olhares negros que tenho acompanhado nestes dias. Olhares expressivos, que esperam antes de se pronunciar. Olhares com muita coisa a dizer, prestes a romper uma atávica submissão que nunca lhes agradou sentir.


24 maio 2018

A insurgência contínua

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Osvaldo Guayasamin, El Grito (1976)

Em meio à disfunção do comando político e econômico que toma conta do Brasil, somos obrigados a tocar a vida da melhor maneira, sem deixar de lado a luta por denunciar esse estado de coisas. É impressionante como a incompetência, mais negligência e desfaçatez tornam-se corriqueiras nas instituições que governam o país. Sob esses substantivos, gerenciam o cinismo que prevalece nas atitudes contra a população brasileira, que em qualquer circunstância menos infeliz, seriam tomadas como insustentáveis.

Essa gentalha resolveu se aliar a sabe-se lá quais interesses forâneos e concordam em cumprir o papel de correia de transmissão das suas decisões estratégicas, por certo encomendadas nos grandes balcões de negociatas financeiras. Desaparece aos bocados o respeito aos cidadãos, ao bem público, à perspectiva de soberania nacional. Por mais pressão que exista de organizações internacionais, de líderes políticos, de intelectuais, a justiça brasileira reitera a mão forte e devora o estado democrático de direito, zombando da constituição. A mídia corporativa, sem qualquer responsabilidade em cumprir seu papel de debater e denunciar, referenda o circo de horrores, ainda que contaminado por desvios éticos.

Ainda assim, de muitas partes surge uma resistência incômoda, que se contrapõe e se insurge, embora sem a dimensão necessária para transbordar o copo. É quase uma luta carbonária, que quando se revela, incorpora pequenas multidões. Dessa insatisfação, sobrevém uma corrente silenciosa de solidariedade que suplanta o ódio e dessa maneira vamos enfrentando o Leviatã invisível, que se bate menos por segurança e mais por desestabilização.

Não sabemos no que isso vai dar. É possível perceber o poder e a onipresença desse comando que nos oprime sem estardalhaço, e que a única resposta é a insurgência contínua, ora em grandes multidões, ora individualmente. Essa oposição deve ser melhor articulada pelos partidos políticos, e de algum modo fazer valer a força do apoio popular nas próximas eleições. As centrais sindicais e os movimentos sociais devem acompanhar as decisões e atuar fortemente, como se cada oportunidade fosse a última.

É nesse estado de mobilização permanente e de ações concludentes, que faremos o inimigo político – não mais adversário político – fraquejar em seus objetivos.   


07 maio 2018

Don Carlos Jorquera

Carlos Jorquera lendo no Las Lanzas

Todas as vezes que o ouvi, em depoimentos sobre os últimos momentos do governo da Unidade Popular, suas palavras terminavam embargadas por uma emoção que o tempo não conseguiu consolar. Ao descrever o La Moneda sob ataque, e mais ainda, Salvador Allende em sua última alocução ao povo chileno, demonstra sua profunda lealdade ao presidente constitucional.

Curiosamente na semana que passou assisti a vídeos que ainda não conhecia sobre os acontecimentos que antecederam e que foram posteriores ao 11 de setembro de 1973. A tibieza do golpe não foi capaz de eliminar a sensatez dos homens e mulheres que foram escorraçados do poder, e minha alegria não cessa em constatar os semblantes sempre iluminados pela convicção das palavras. De outra parte, é sempre difícil lidar com a arrogância discursiva dos golpistas, a justificar a intervenção militar. 

Na sexta-feira, 4 de maio, a voz de Carlos Jorquera, secretário de imprensa do governo Allende, calou-se para sempre. No sábado, dia 5, em triangulações nas redes sociais, deparei com um breve comunicado de sua filha, Alejandra Jorquera, publicada no twiter, "Há pouco morreu meu pai e não sei o que dizer, salvo que às vezes a vida é uma m..., e que apesar de todos os esforços, não consegui chegar a tempo para darmos todos os beijos que nos faltaram".

Don Carlos Jorquera fazia parte de uma linhagem de políticos dignos, cuja competência profissional incorporava sofisticação intelectual, muito diferente da estupidez dos políticos neoliberais de hoje, por demais preocupados com suas ganâncias. Ele se soma a um elenco de personalidades que me marcaram e que jamais terei o prazer de um cumprimento pessoal, seja no restaurante Las Lanzas ou em outro local público de Santiago. Consola-me o fato de que suas lágrimas resultam das certezas indeléveis de sua luta, tão bela quanto imprescindível.


06 maio 2018

Quando um bando de medíocres se articula

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Guayasamín, Lagrimas de sangre

A chuva caía pesadamente e o vento começava a soprar de novo
Paul Bowles, Que venha a tempestade

Não precisamos mais de quarenta ou cinquenta anos para desvelar a ação irresponsável da burguesia quando ela intervém de modo acintoso para retomar o poder, fora das normas institucionais. Passam-se poucos meses para vir à tona o que parlamentares corruptos, mais o capital financeiro, mais a mídia corporativa patronal, e agora a complacência, ou o movimento moroso (um achado esse duplo sentido!) do judiciário, para a sociedade civil tomar plena consciência do grave coup d'état promovido, cujo processo tratou de subtrair os direitos dos trabalhadores e empoderar ainda mais a classe dominante. Um escárnio. 

Temos exposto pari passu os desdobramentos dessa lamentável aventura comandada por institutos científicos forâneos, os tais think tanks conservadores coordenados por políticas de estado imperialistas, ou neocolonizadores, como se preferir, cujas ações de algum modo articulam-se de modo sincronizado com nossas burguesias politicamente ignaras e economicamente vorazes, para o controle das economias latino-americanas como um todo. Assim ocorre no Brasil, no Paraguai, no Peru, na Colômbia, no Equador, na Argentina e subindo pela América Central, até alcançar o México.

Na Argentina, chega-se por fim a um momento de impasse dessa voragem brutal e inconsequente. A semana que passou foi trágica para o governo neoliberal de Macri: forte desvalorização do peso, fuga de dólares, aumento da taxa referencial de juros para 40%, previsão de mais tarifazos, congelamento dos salários, com recessão e inflação batendo à porta. Talvez o mais grave para esses inconsequentes travestidos de gestores liberais, a perda da confiança dos mercados. Ou seja, a sombra do trágico dezembro de 2001 retorna ao horizonte das possibilidades. Sobrevém na arguição diária desses falsos profetas o solene ungido pela desfaçatez, com o agravante que ela aprofunda uma sensação que guardo desde o início desse governo, uma psicopatia irreverente.

Tal como é impossível conceber a plena democracia em um governo dotado de políticas neoliberais, porque elas em si são a negação dos direitos e do bem-estar social que contemple a população como um todo, é improvável que o comando de um governo pautado por políticas neoliberais incorpore a sensibilidade no trato do bem-estar social. Em outras palavras, não consigo ver e ouvir Macri, como também Temer et caterva como seres sensíveis à miserabilidade do povo, e pior ainda, como gestores preocupados em preservar a autonomia e o sentido de nação, porque a bem da verdade, não fazem mais que gerenciar as oportunidades do capital especulativo e os interesses das grandes corporações transnacionais.

No Brasil, um cemitério em termos de reflexão e tolerância política, as manchetes já não são sobre ideias, mas sobre mentiras ardilosamente constituídas, para disseminar a confusão, a incerteza, e de modo subliminar, o medo. A informação ganhou, nesse jornalismo pós-Murdoch, o sentido de ousar em nome da fofoca, do escândalo, e para isso todos os recursos são válidos, da escuta ilegal ao fake news, hoje tão badalado pelas editorias políticas e econômicas da mídia corporativa. Com o poder ilimitado para editar a realidade, a mídia se alimenta da omissão de um judiciário acovardado, que não tem o menor interesse em confrontar a classe dominante em sua espoliação não só da narrativa histórica, como dos direitos constitucionais. 

O título da postagem se refere a um bando - referência a um ajuntamento oportunista de pessoas - que incorpora a mediocridade, ou melhor esclarecendo, um nível quando muito mediano de percepção da realidade social, nos seus mais profundos e delicados meandros. Vejo seus capitães do mato diversas vezes ao dia, circulando para lá e para cá, vestidos em seus ternos baratos, a exalar conversas que agregam profusão e futilidade. Curioso como são afetados no gestual, sem dispensar qualquer afeto por seus temas, o que não deixa de ser triste se pensarmos por um momento que são referência de atuação produtiva no mercado, a representação do profissional bem-sucedido. Sociologia, história e filosofia destituídas em nome da rapacidade. 

Não obstante, constituem os braços da mentalidade medíocre que os remunera, do poder infausto nascido no golpe institucional, e por essa razão não deixam de ser triviais. Ao representarem suas corporações financeiras, os men in black se mobilizam em seus afazeres dispensáveis, cuja imponência reflete a farsa de nossa contemporaneidade, nada além do que superfície em busca de profundidade.