07 junho 2014

Camus




A foto acima foi a primeira que vi de Albert Camus, há mais de 40 anos, impressa no livro O Estrangeiro, impressa na quarta capa de uma coleção portuguesa dedicada ao autor. Foi a última leitura solicitada pela professora Marlene, no final do curso ginasial, que a cada bimestre ao longo de três anos, nos pedia a leitura de um livro, normalmente do romantismo brasileiro, mas também de outros períodos. Assim, de cabeça, me recordo de Visconde de Taunay (Inocência), Bernardo Guimarães (O Garimpeiro), José de Alencar (O Tronco do Ipê), Machado de Assis (Iaiá Garcia), como também Orígenes Lessa (O Feijão e o Sonho), Aluísio de Azevedo (O Cortiço), Maria J. Dupré (Éramos Seis), e uns poucos autores estrangeiros, como Julio Verne (20.000 mil Léguas Submarinas) e O Estrangeiro, de Camus. 

Pois bem, foi a última leitura de um último bimestre com a incansável professora Marlene, que eu e mais uns tantos colegas de classe combinávamos ao longo dos anos alguma possibilidade de imobilizar seu fusquinha 1961, claro, com ela dentro. Incansável porque determinada, e em um momento difícil de nossa história, suas aulas se encaixaram integralmente no período Médici. Hoje sei o quanto foi importante aquela sua determinação de nos abrir os horizontes por intermédio da literatura, mas na época, aluninhos ingênuos e incipientes, o mundo se limitava ao pátio externo para o jogo de bola com gol caixote. Víamos os seus caprichos como exigências que estavam acima de nós. Em suas aulas vimos de tudo, análises sintáticas, acentuação, ortografia, verbos, ditados, além das análises literárias, enquanto a olhávamos com um misto de desejo e repulsa. 


Era bonita, jovem, conhecida no Ginásio Estadual Prof. Linneu Prestes como 'a bonequinha' em razão de seu jeito delicado, a franjinha esparramada sobre a testa, a voz fina exprimindo-se de modo articulado em meio a abordagens sempre esclarecedoras. Não sobreviviam dúvidas nem tampouco paixão, assim ela encontrava uma forma de lidar com mais de quarenta meninos na flor da adolescência, no auge da inquietude. Ainda sou capaz de visualizá-la em seu otimismo diante da tarefa singular e determinada, um inequívoco traço camusiano de ser.  

Foi nesse contexto que soube pela primeira vez de Camus, e naturalmente passou despercebido. Fiz algum esforço em avançar pelas primeiras páginas, mas desisti. A nota bimestral da professora Marlene somava um conjunto de pequenas avaliações, compreendi que sacrificar a leitura de O Estrangeiro não seria um problema. Passei de ano, e o tempo passou. O livro permaneceu de início numa estante da casa de meus pais e mais tarde o confisquei para as minhas prateleiras, apenas por seu valor sentimental. 

Por vezes, ao longo da vida, retomei o exemplar e sem enfrentá-lo, terminava por apreciar a imagem que ilustra esta postagem, um Camus reflexivo, exalando o absurdo da vida em uma expressão. Já bem crescido, resolvi aventurar-me na narrativa e desvelei uma obra magnífica, escrita com primor. A esse tempo, já me identificava como um existencialista sartriano, o que postergou minha atenção para com a obra camusiana, não em razão de uma postura filosófica que me opusesse a essa aproximação, mas pela própria necessidade de conhecer melhor a obra de Sartre. Parecia-me complicado dedicar-me por igual a dois pensadores com divergências entre si. De todo modo, posso dizer que nunca abandonei Camus e quando pude realizei pequenas incursões, como em A QuedaO Equívoco, ou O Mito de Sísifo, trechos de O Homem Revoltado, obra esta que acelerou a ruptura com o então amigo Sartre

Nestes dias, assisti ao belíssimo documentário Viver com Camus de Joel Calmettes e uma onda de imenso prazer se formou estimulada por minha recôndita simpatia pelo autor, esparramando-se nas areias quentes do universo camusiano feito de ousadia, determinação e singeleza. O indivíduo em situação, diante do mundo controverso, necessitando se posicionar e para isso, fazendo sua opção independente das tensões, sabendo de algum modo lidar com as dificuldades. 

Camus nos mostra que é possível movimentar-se com destreza, ainda que seu silêncio equivocadamente o transforme em um alvo fácil. Tanto quanto a professora Marlene, bem vejo agora, uma camusiana par excellence! Destaco um trecho de Camus inscrito no belíssimo livro de Morvan Lebesque, Camus par lui même: 'Exalto a minha lucidez no meio daquilo que a nega. Exalto o homem perante aquilo que o esmaga, e a minha liberdade, a minha revolta e a minha paixão juntam-se nesta tensão, nesta clarividência e nesta repetição desmedida (...)'. As palavras do homem absurdo a recusar o desespero ou a tentação do suicídio, vivendo a vida e dando forma ao seu destino. 


Gosto de recordar os depoimentos das pessoas comuns no filme de Calmettes, tão plenos de lucidez, de bem-estar com o mundo ao redor, e de imaginar como as dúvidas, as convicções, os acertos, os equívocos de uma obra são capazes de proporcionar sentimentos como a do homem que sem ter conhecido Camus, o considera un copain, un ami, un compagnon de route.



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