25 junho 2014

A Praga de Josef Koudelka



Com a mais forte das luzes pode-se dissolver o mundo. Diante de olhos fracos, ele se torna sólido, de olhos mais fracos ele ganha punhos, de outros mais fracos ainda, ele fica envergonhado e esmaga quem ousa fitá-lo.
Franz Kafka, aforismos.




Recordo-me com alguma precisão destas imagens em uma revista, provavelmente publicadas na desaparecida Fatos & Fotos, cujo estilo se aproximava bastante da famosa revista Life estadunidense, o saboroso deleite para os olhos, a generosa fartura do foto-jornalismo em preto e branco. Para uma criança circunspecta como eu, aquilo era o êxtase, era possível alongar indefinidamente cada visita, avançando e recuando em cada leitura. Viajava nos detalhes das imagens, tentando compreender o clima dos acontecimentos e o que, afinal, se encontrava no campo semântico de cada reportagem. Construía o imaginário das fotos a partir de minhas prolongadas observações, explorando cada detalhe de cada fotografia. A invasão da Tchecoslováquia oferecia uma mistura de tanques e armas com expressões de gente comum nas ruas, o espaço urbano revolto a partir de uma presença indesejável, e o contexto forjava-se na dicotomia do bem (as pessoas indignadas) e do mal (os militares, ou, os indivíduos de capacetes e armas). 


Apenas muito mais tarde saberia das circunstâncias do registro iconográfico, tomado pelo fotógrafo Josef Koudelka, que captou a invasão das tropas do Pacto de Varsóvia sufocando o que se denominou A Primavera de Praga. Os entrechoques comandado pela revolta estudantil se manifestavam naquele mágico 1968, em maio nas barricadas de Paris, em outubro na trágica Noite de Tlatelolco, em agosto com a supressão da experiência socialista tcheca. Durante anos em minha juventude o nome Alexander Dubcek significou mais do que o senso libertário de um governo comunista com feições libertárias, ofereceu-me a primeira leitura de um desejo de uma inédita organização coletiva, finalizada com a reação esperada, a resistência coletiva. Nas capas de meus cadernos colegiais, fazia questão de registrar seu nome como uma forma de independência juvenil, contra toda forma de opressão social.

  
Ainda uma vez Praga, a mesma de Jan Kubis e Josef Gabcik que se levantou contra a ocupação nazista, a mesma de um certo Josef K., que certa manhã foi detido sem que tivesse feito mal algum. No sábado passado, pude reencontrar em uma exposição no MIS uma parte do acervo fotográfico de Koudelka sobre a invasão e naturalmente reencontrar com minha infância, mais uma vez aquelas personagens que me haviam absorvido longamente, agora em um contexto histórico completamente modificado. Como da primeira vez, observei as faces dos ocupantes, em sua maioria jovens, amontoados em seus tanques, assustados com uma mobilização popular inesperada que os rechaçava. Retomei as expressões gestuais, a grande marca dessas imagens, em um tempo em que o photo op não era uma prática disseminada, elas transcendem o registro de uma decisão política para nos desvelar o sentido puro de uma reação coletiva.

   
Recupero a indignação em movimento espasmódico, que busca apenas repelir o indesejável, sem uma organização eficaz. Por certo temos a construção simbólica de uma resistência impossível, mas que não deixa de se manifestar. Quem sabe aquele jovem chinês que deteve uma coluna de tanques na Praça da Paz em Beijing, em 1989, não tinha essas imagens como referência para seu ato. Quem sabe outras tantas atitudes de resistência impossível, ao longo dos últimos quarenta anos, não foram alimentadas por estas imagens! Quando não vemos os movimentos isolados de jovens, vemos a massa estática a se colocar como um signo de oposição. Toda a paisagem sonora silenciada pela gravidade das cenas, pelo desespero e pela tristeza de um fato que se acaba de se consumar.


Tanto quando garoto, vejo o que me liga a esse momento histórico tão corajosamente apreendido por Koudelka, a profunda comoção social, manifesta por gestos e atitudes indignadas, de resistência, ainda que inútil. As condições políticas se me revelam em um plano distante; o que persiste em conduzir o meu olhar são os dois lados claramente definidos, um com face definida, que denota em vários matizes o estarrecimento que brota no instante, e outro com uma face invisível, que se consubstancia na presença implacável, premeditada. Tornam-se, juntos, a expressão de uma decisão inapelável, que rompe de modo definitivo com um estado de coisas e talvez por isso, aprofundada pelo tom sombrio das imagens, o cinza de um verão inesquecível. Mais do que as marcas de uma mudança histórica, imagens de uma primavera que se dissolve nos desvãos da intolerância burocrática.





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