03 fevereiro 2014

Todos os esforços para deter o cidadão Silva


Hohe Strasse, 2010


Foi a primeira decisão das férias, pagar as contas em atraso no Centro Comercial. As festas de fim de ano cobravam, enfim, seu preço, de modo que lá se foi Gualberto Silva, uma caminhada até o ponto, cinquenta minutos no coletivo e mais um trecho do metrô. Desceu no calçadão e em poucos minutos (teria chegado mais rápido se não houvesse tanta gente aproveitando as liquidações de começo de ano) alcançou o destino. Poderia escolher uma de três entradas, optou pela principal, ao seu juízo mais ampla e acolhedora, e qual não foi sua surpresa quando logo foi detido. O segurança afirmou que não poderia permitir sua entrada. Gualberto Silva observou o homem, bem mais alto e forte, mas sem um argumento razoável para contê-lo. Em situações de tensão não conseguia exprimir-se, balbuciava sílabas, pedaços de frases, a gagueira o tolhia. Então sacou as três prestações do bolso e as brandiu próximo das narinas do sujeito. O intercomunicador ligado transmitia mensagens codificadas, QAP, prossiga...; informar o QTI... vozes espaçadas por um forte chiado. Permaneceram por alguns instantes um diante do outro, Gualberto Silva tentou pela direita, pela esquerda, foi contido. O segurança estava bem treinado, movia-se sem acrescentar uma palavra sequer ao já dito, não pode passar. Os gestos dos dois despertou a curiosidade da multidão que passava, até que um outro segurança, mais baixo e com um colete especial se acercou, e antes que fosse colocado a par do problema, informou a Gualberto Silva para que os acompanhasse. Mas que papo é esse?... e o mais baixo prontamente imobilizou, com toda a discrição, ao pobre Silva. Dirigiram-se a um trecho menos movimentado, um corredor de um branco imaculado, em que as paredes se confundiam com o piso e o teto. Ao final, uma porta, entraram e pediram para que Gualberto Silva se acomodasse. A mobília da sala era um conjunto de cadeiras, além de uma mesa de madeira. Pela porta oposta, atrás da mesinha, adentrou recinto um homem gordo, calvície avançada. Sentou-se diante de Gualberto Silva, olhou para os seguranças com uma expressão cansada e sem graça. Sem pressa, tirou do bolso um maço de cigarros, escolheu um, acendeu, deu uma longa tragada e ao final, mirou o elemento detido. É proibido fumar aqui, mas hoje me deu vontade... Outra longa tragada. O dia vai ser longo, mas que saco... Deu uma risadinha ridícula e olhou para Gualberto Silva, que por sua vez começava a se preocupar, atento aos movimentos ao redor. Estava isolado em um ambiente neutro, cercado por três sujeitos desconhecidos, que representavam a segurança do Centro Comercial e o fato, o tinham detido. Quis argumentar e balbuciou nervosamente, palavras entrecortadas que ampliavam a suspeita, fosse qual fosse. Quando percebeu, estava a dois passos do gordo, capturado e recolhido de volta ao banco pelos dois seguranças. É o seguinte, que porra você veio fazer aqui, cara? Cadê sua turma? Qual é o esquema?... A presunção dos gestos o indicava como chefe, Gualberto Silva por fim conseguiu mostrar as três prestações, Estou aqui para pagar estas... justamente quando o gordo as tomou, forjando analisá-las com seriedade. Retornou para trás da mesa, sacou o intercomunicador da cintura e chamou alguém pelo rádio. Em meio ao diálogo, disparou já sem paciência, Faça-me o favor, este é um caso 32-B, não é comigo, levem o elemento pro Xavier... O Xavier tá de folga, falou aos poucos o mais alto, Então vai lá pro Tobias, caralho... Gualberto Silva foi erguido e bem que se esforçou por argumentar algo, quando o segurança mais baixo o imobilizou e o grande, com seu jeito legal, acrescentou, Não, não fale... Aguardaram mais dois chegarem, um de óculos e outro careca, e todos os quatro mais Gualberto Silva, imobilizado, saíram silenciosos rumo à sala do Tobias. Tiveram de tomar os caminhos menos frequentados pelos clientes, o Centro Comercial estava cheio, era o primeiro fim de semana depois do rolezinho que conduziu mais de cinquenta jovens para o mesmo passeio restrito. O ar que se respirava era de desejo por compras, normal como sempre fora, nem uma referência a qualquer tipo de problema que só a direção perscrutava, deixando a segurança em prontidão máxima. Gualberto Silva deu azar de ser jovem, negro e estar muito à vontade quando entrou naquele templo do consumo. Agora caminhavam os cinco pelos caminhos interiores, novamente os corredores imaculados, entraram por uma porta estreita e Gualberto Silva foi despejado em uma sala maior que a anterior, com pelo menos outros quinze cidadãos de aparência suspeita retidos para averiguação. Havia mais seguranças, e lá na frente, o Tobias. O tempo escoou gota a gota, Gualberto Silva ainda imobilizado por uma correia de plástico tentava se indignar, mas era sempre lembrado pelo mais alto, Não, não fale... e posteriormente, Não, não se mexa... Parecia haver neste aviso um sinal de solidariedade, mas a frieza do comentário pareceu-lhe de fato uma construção de meses de treinamento. Um a um os suspeitos retirados de circulação foram trazidos ao Tobias, o interrogatório variava de acordo com a disposição do detido. A fila foi andando, os caras eram encaminhados para a mesma porta aos fundos, outros foram chegando, a sala não dispunha de ar condicionado, o cheiro de tensão e sofrimento percorria as narinas de seguranças e detidos, até que chegou a vez de Gualberto Silva. Tobias checou o documento de identidade, fez as perguntas olhando nos olhos do rapaz, que contido, desconfortável, vigiado, esgotado, respondia com a indignação possível. Por fim, sem que fosse necessário, Gualberto Silva exalou um derradeiro e perigoso comentário, Minha mulher e minha filha estão me esperando... como se isso pudesse acelerar a burocracia da detenção. O rádio do Tobias não parava, parecia que um verdadeiro sistema de segurança funcionava a pleno vapor, com várias instâncias sendo consultadas. Tobias avaliou as prestações, não queria dizer o que disse, Bom meu chapa é o seguinte, o Gileno, esse sujeito que está do teu lado - que era o mais alto - vai te conduzir quietinho até o Adamastor e lá ele resolve a situação... Gualberto Silva esperou pelo brinco colado na orelha que alguns antes receberam, mas era um eleito, safou-se na boa, foi erguido e conduzido por uma outra porta pelo Gileno, mais alto, mais ambíguo e mais sem graça, rumo ao Adamastor. Mais corredores, um trecho do terceiro andar do Centro Comercial, por um momento Gualberto Silva sentiu-se cidadão e compartilhou em seu deslocamento forçado com famílias que circulavam na praça de alimentação, momento de inesperado alívio, uma fresta de sagrado direito em que pode observar os casais de mãos dadas conversando, olhando para as vitrinas, crianças correndo, muitos jovens à vontade, sorrindo, passeando, namorando sem serem incomodados. A sala que entraram era quase exclusiva, Gileno despejou Gualberto Silva diante do Adamastor, nem cadeira para se acomodar. Havia uma pequena conferência, eram ao todo três, uma conferência de supervisores, chefetes da segurança, quando Silva chegou. O Adamastor se antecipou e tomou as prestações que o detido lhe mostrou. Na boa, parece que está tudo bem por aqui, não é mesmo?, ao que Gualberto Silva, já bem fatigado, concordou. Coisas do sistema, temos de separar o joio do trigo, nem sempre as coisas são o que são... e prosseguiu repetindo sobre as coisas, tentando convencer Gualberto Silva que as coisas, bem, que a sociedade de consumo não previa tamanhas transformações, que ali estava a prova de um espaço de insondável penúria no sistema capitalista, que era necessário entender que tudo continuaria sendo pensado naquela estrutura cautelosa e preconceituosa. Adamastor não pretendia que Gualberto Silva entendesse, e talvez nem soubesse explicar, ficava mais fácil assimilar que ele e sua equipe estavam apenas cumprindo ordens superiores. Liberado para, enfim, pagar suas prestações, Gualberto Silva foi acompanhado pelo Gileno, que era tão negro e das margens quanto ele. Gualberto Silva arriscou dizer algo quando foi liberado da correia, e mais uma vez e de modo mais suave o segurança lhe pediu, Não, não fale... dont speak!, de acordo com o aprendizado visando a Copa. Tomaram o elevador dos fundos, desceram, desceram e diante de um novo corredor, menos brilhante como os anteriores, o cidadão Gualberto Silva estava livre para se encaminhar à única porta disponível e que uma vez atravessada, se viu inopinadamente banhado pelo sol supremo de um lindo dia. Estava de volta à rua.


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