28 janeiro 2014

Virgilio Piñera



Tive contato com os textos do escritor cubano Virgilio Piñera vários anos depois de conhecer a obra de Kafka. Faço essa relação porque identifico pontos semelhantes na literatura de ambos que de algum modo me agradam, como as escolhas temáticas, o estilo seco, as elaborações evolutivas, enredadas em uma descrição extravagante (evito o termo absurdo), que proporciona ao leitor o saboroso estranhamento que nos faz persistir em meio aos delírios narrativos, estendidos às últimas consequências. 

Nos Contos Frios de Virgílio Piñera, cuja leitura retomo, me aproximo dos textos menos extensos e chama atenção o grotesco das situações cotidianas, que evoluem marcadas por fina ironia, a crítica que se converte em deboche das coisas menores de nossa condição humana. O crítico José Rodrigues Feo não fala de ironia, mas de humor: O humor tem em seus relatos as mais singulares manifestações. Em alguns provoca um riso saudável; em outros já nos deixa um sabor amargo na boca. O destino de seus personagens se revela no final da narrativa, o desfecho que os encerra em uma apreensão humorada, ou por vezes bem a propósito de Sísifo, os acomoda em um singelo desconforto, a sugerir uma continuidade (expiação?) indefinida.

Não posso negar a filiação direta em alguns de meus contos escritos nos começos dos anos 1990, quando o li pela primeira vez, como em O senhor Martinez ou Ônibus. Marcou-me em especial o modo que constrói sua narrativa, os fatos alinhavados em sua evolução teleológica, o tema lançado e desenvolvido em um processo linear e finalizado com a habilidade de um grande narrador. 

Abaixo, dois pequenos contos de Virgilio Piñera.

O INFERNO

Quando somos crianças, o inferno não é outra coisa senão o nome do diabo posto na boca de nossos pais. Depois, essa noção se complica, e então reviramos no leito, nas intermináveis noites da adolescência, tratando de apagar as chamas que nos queimam - as chamas da imaginação! Mais tarde, quando já não nos olhamos nos espelhos porque nossos rostos começam a se parecer com o do diabo, a noção do inferno resolve-se em um temor intelectual, de maneira que, para escapar a tanta angústia, nos pomos a descrevê-lo. Já na velhice, o inferno se encontra tão à mão que o aceitamos como um mal necessário e até deixamos ver nossa ansiedade por sofrê-lo. Mais tarde ainda (e agora, sim, estamos em suas chamas), enquanto queimamos, começamos a entrever que talvez poderíamos nos aclimatar. Passados mil anos, um diabo nos pergunta com cara circunspecta se sofremos ainda. Respondemos que a parte da rotina é muito pior que a parte do sofrimento. Por fim chega o dia em que poderíamos abandonar o inferno, mas energicamente rechaçamos tal oferecimento, pois quem renuncia a um costume querido?


NA INSÔNIA

O homem deita-se cedo. Não pode conciliar o sono. Dá voltas, como é de se supor, na cama. Enreda-se entre os lençóis. Acende um cigarro. Lê um pouco. Torna a apagar a luz. Mas não pode dormir. Às três da madrugada levanta-se. Acorda o amigo do lado e confia-lhe que não pode dormir. Pede conselho. O amigo lhe aconselha a dar um pequeno passeio a fim de cansar-se um pouco. Que em seguida tome uma xícara de chá de cidreira e que apague a luz. Faz tudo isso, mas não consegue dormir. Torna a levantar-se. Desta vez recorre ao médico. Como sempre sucede, o médico fala muito, mas o homem não dorme. Às seis da manhã carrega um revólver e estoura os miolos. O homem está morto, mas não pode dormir. A insônia é uma coisa muito persistente.

(Textos extraídos do livro Contos Frios, ed. Iluminuras, 1989)



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