09 janeiro 2014

Simone de Beauvoir


Antes de Jean-Paul, foi Simone quem me orientou e consolou na vida. Não a jovem Simone dos anos de ouro do existencialismo francês, mas a Simone mais velha, poucos anos antes da morte. Aos meus 23 anos, lá estava eu devorando A Cerimônia do Adeus, sem qualquer embasamento da filosofia existencial, mergulhando na narrativa límpida de uma história de vida que se projetou incessantemente, em meios a compromissos e engajamentos, para o futuro. A leitura desse percurso de vida me ofereceu a compreensão da angústia, e paradoxalmente me proporcionou um profundo consolo, ainda que sob as permanentes dúvidas do espírito. 

Fui lançado às circunstâncias objetivas da vida, de um modo franco, que me dizia claramente, "eis o que tens, agora, como proceder é contigo!". Difícil lembrar outra sugestão assim concludente. Não foi preciso antecipar o sentido de responsabilidade, a ausência de desculpas, a liberdade como condição humana, antessalas da filosofia sartriana, onde mais tarde me dedicaria com empenho. Não foi preciso nenhum tipo de misteriosa sedução: naquele momento, mais do que proteção, era meu desejo puramente assimilar novas possibilidades, e Simone de Beauvoir as ofereceu sob o gosto amargo de seu desconsolo.  

Os movimentos que compunham a cerimônia final, ao lado do homem amado que fenecia aos poucos, me propiciaram a apreensão de um olhar terno para a vida, enlaçado a esse destino assumido das nossas escolhas, que nos acompanha e nos renova a cada dia. As palavras de Simone, ao registrar em um diário o convívio com uma vida declinante, física e intelectualmente, me permitiu aproximar dessa complexa definição do mais genuíno amor humano. Pude senti-lo, revestido por descrições que se preocupavam com a chegada do fim, sem a hipocrisia dos sentimentos benevolentes. Ao contrário do que a crítica da época esperava, Simone apenas nos expressa seu amor, neste estágio prenhe de dor, sem deixar de olhar a irreversível a ampulheta da vida, o restinho de areia a esvair. 

Poucas vezes busquei outros livros de Simone e quando o fiz, retomei o mesmo sentimento de serenidade e de amor que vivenciei na leitura de A Cerimônia... Vieram depois partes de O Segundo Sexo, A Força das Coisas, breves passagens de entrevistas feitas com Sartre, além de literaturas secundárias, como a interessante biografia escrita por Claude Francis e Fernande Gontier, Simone de Beauvoir. Meu deslocamento para a filosofia de Sartre, simultaneamente ao meu interesse pelo círculo intelectual de Paris do pós-guerra, por certo se deu como extensão deste primeiro contato, destas primeiras e abundantes impressões, que me alimentam até hoje. 

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(...)
Tentei pôr ordem no quadro, à primeira vista incoerente, que se ofereceu a mim: em todo caso, o homem se colocava como o Sujeito e considerava a mulher como um objeto, como o Outro. Essa pretensão explicava-se evidentemente por circunstâncias históricas; e Sartre me disse que eu devia também indicar as bases fisiológicas. Estávamos em Ramatuelle; falamos disso muito tempo, e eu hesitei: não pensara em escrever uma obra tão vasta. Mas efetivamente, meu estudo sobre os mitos ficaria incompleto se não se soubesse que realidade eles recobriam. Mergulhei, portanto, nos livros de fisiologia e de história. Não me limitei a compilar; os próprios cientistas, e dos dois sexos, estão imbuídos de preconceitos viris, e eu tentei redescobrir, por trás de suas interpretações, os fatos exatos. Em história, destaquei algumas ideias que não encontrara em nenhum luar: relacionei a história da mulher à história da herança, o que quer dizer que ela me pareceu como um contragolpe da evolução econômica do mundo masculino.

Comecei a olhar as mulheres com um olhar novo e fui indo de surpresa em surpresa. É estranho e estimulante descobrir de repente, aos quarenta anos, um aspecto do mundo que salta aos olhos e que não era percebido. Um dos mal-entendidos que meu livro suscitou foi que se pensou que nele eu negava qualquer diferença entre homens e mulheres: ao contrário, ao escrevê-lo, medi o que os separa; o que sustentei foi que essas dessemelhanças são de ordem cultural, e não natural. Contei sistematicamente como elas se criam, da infância à velhice; examinei as possibilidades que este mundo oferece às mulheres, as que lhes são recusadas, seus limites, suas oportunidades e faltas de oportunidades, suas evasões, suas realizações. Compus assim o segundo volume [de O Segundo Sexo]: "A experiência vivida". (...)

(Simone de Beauvoir, em A Força das Coisas, Ed. Nova Fronteira, 2010)


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