Névoa noturna em BsAs |
Da janela do quarto, desvelo sistematicamente a paisagem urbana, na companhia de uma taça de vinho e de recordações. A densa névoa com ares expressionistas acoberta a noite, destacando o cintilar brilhante da iluminação pública, cada lâmpada envolta por uma auréola leitosa, sutil, que esparge a luz em um largo entorno. A praça do Congresso se aprofunda em seu silêncio de recolhimento, nem mesmo os cães, com seus latidos pontiagudos. Poucos são os veículos que persistem a passar na direção da Callao e mais além, na verdade transitam tomados pela urgência de chegar. Cá em cima, já não tenho como divisar o fundo da cidade, a plêiade de topos eretos, adensados e adormecidos. Minha visão se contém à linha de edifícios, do outro lado da praça, sem nenhum destaque, a não ser à minha esquerda, os generosos letreiros do cine Gaumont, recentemente reaberto, a imprimir sua marca tradicional para as sombras do espaço público.
Nenhuma novidade, a não ser os esparsos registros mentais da última mesa da noite, nas Jornadas de Sociologia. Um colegiado de professores, pesquisadores e exilados guatemaltecos expuseram a história da primavera democrática da Guatemala, que se iniciou com a eleição de Juan José Arévalo, em 1944, e se aprofundou com Jacobo Arbenz, para então ser violentamente retirado do poder pela CIA. Ah, quantas histórias marcadas a ferro e fogo em nossa América Latina, quantas lutas brutais, ganhas e perdidas, quanto orgulho desperdiçado, quanta covardia recompensada! Como um jogral, as vozes foram apresentando partes previamente combinadas do processo histórico guatemalteco.
Um dos mais idosos, professor aqui em Buenos Aires, e que saiu do país logo após o golpe de estado de 1954, nos deliciou com uma narrativa permeada por reminiscências da infância. Contava o quanto tinha sido importante para o país um homem como Arbenz chegar ao poder, aprofundar as reformas sociais e perceber as mudanças, desde as mais singelas que lhe envolveram diretamente, como aquela de cada propriedade rural convocar um sapateiro que fizesse o molde dos pés dos trabalhadores, para que pela vez primeira, pudessem calçar sapatos! E falou das recordações do rádio, das comemorações populares nas ruas, da transformação que um punhado de professores e estudantes, assumindo o poder, proporcionaram ao país.
No meio dos apresentadores, Miguel Angel Asturias, o filho. Foi, aliás, quem me motivou a ir a esse encontro, depois de ver seu nome na programação da noite. Caminhei as mais de dez quadras, do hotel até a Faculdade de Ciências Sociais, os pensamentos livres, volteando as impressões mais imediatas, revisitando o baú do imaginário, com suas trajetórias de vida em suspenso. Já tarde para uma palestra sobre a história da Guatemala, na sala se reuniam umas vinte pessoas entre estudantes, professores e convidados. Diante da mesa, o círculo de palestrantes guatemaltecos, que descreviam aspectos específicos do governo revolucionário, primeiro com Arévalo, depois com Arbenz.
O silêncio de Asturias, filho, se apresentava como um distanciamento de corpo e mente da reunião, como se ligasse a outras paragens, lembranças talvez de pequeno, quando o pai conduziu a família para o exílio em São Salvador, viagem tumultuada, sem fim, pois o golpe impôs barreiras que eram superadas uma a uma após o reconhecimento de que se tratava do grande escritor Miguel Asturias. Mas para que o reconhecimento dos papéis se procedesse, era necessário encontrar alguém nas redondezas que fosse alfabetizado, o que nem sempre era tarefa simples no interior da Guatemala.
Mas bastou chegar o momento de sua fala, para que o vozeirão se encorpasse ao brilho do semblante, e assim descrevesse sua experiência pessoal dos anos Arbenz, em que seu pai, autor de El Señor Presidente e Hombres de Maíz, atuou como embaixador. Na verdade, Asturias, filho, foi o terceiro descendente de uma grande personalidade, que assisti e me marcou ao longo dos anos.
O primeiro deles, no longínquo tempo de graduando, foi o neto de Trotsky, Esteban Volkov, convidado a falar sobre a revolução bolchevique, no auditório de Geografia da USP, época em que devorava impressionado o último livro da trilogia de Isaac Deutscher, O Profeta Desarmado. Vagas recordações, não me lembro de qualquer palavra de sua fala em castelhano, porém, marcou-me sua expressão corporal, a larga testa do avô, o olhar plácido e a circunspecção de quem flutuava pelas lembranças dos anos de exílio em Prinkipo ou Coyoacán...
Poucos anos depois, foi a vez de me deparar com um raro descendente, o tenista indiano Ramesh Krishnan. Na época, eu não só praticava tênis, como era um apreciador da história do esporte. E sabia que o Brasil havia perdido a semifinal da Davis, em 1966, para a Índia. Na ocasião, a dupla mais espetacular do tênis brasileiro, os gaúchos Thomas Koch e Edson Mandarino, fizeram história eliminando diversas seleções europeias e dentre elas a forte seleção dos EUA, que contava com o jovem Arthur Ashe. No último jogo, Koch, teve a partida nas mãos, mas caiu por 3 sets a 2 para Ramanathan Krishnan. Teríamos ido para as finais, com chances de vencer a Austrália. Nunca mais ficamos tão perto de uma conquista da Davis.
Peripécias, nada mais que peripécias
reflexivas. Vinte e cinco anos depois desse episódio, no clube Pinheiros,
encontrei o filho de Ramanathan, Ramesh Krishnan, logo após a derrota para Luiz
Mattar pela mesma copa Davis, tranquilamente sentado nas arquibancadas,
assistindo ao jogo de seu compatriota Leander Paes contra Jaime Oncins. A
vitória de nossa equipe já estava consolidada e permaneci o suficiente para perscrutar
por um tempo o homem que incorporava Ramanathan Krishnan. Observando-o em seu
silêncio alheio, era como se eu pudesse domar a imagem poderosa de seu pai,
exercitando assim o imaginário simbólico semelhante ao que nossos ancestrais
pré-históricos realizavam nas paredes das cavernas...
...
Meras reminiscências testemunhais sobre descendentes de personalidades que me marcaram, em momentos distintos da vida, por razões diversas. Desejei apenas transcrever as impressões longamente preservadas, que revelam ao menos uma fugaz coincidência: olhares dispersos, despretensiosos, dimensionando expressões tão modestas quanto podem ser os percursos de uma vida comum.
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