21 abril 2013

As Imagens Momentâneas



Para se compreender a coisificação do mundo e suas distorções regidas pela circulação monetária, um caminho instigante é o que passa pelo espírito subjetivo das apreensões cotidianas em Georg Simmel. Em seu Imagens Momentâneas, temos um conjunto de contos, fábulas, sátiras, até mesmo um poema, que foram anteriormente publicados na revista de vanguarda Jugend, de Munique, sob os auspícios do movimento Jugendstil (a Art Nouveau alemã).  

Temos neste pequeno volume o olhar corriqueiro, as percepções imediatas da vida diária, tentativas de captar os signos dos tempos modernos. Simmel se entrega à liberdade em escrever sátiras, contos, fábulas, com o mesmo espírito linguístico-literário aplicado a Nietzsche, reflexões do sentido sem sentido, um movimento de reconciliação entre o olhar mais superficial e o espírito mais profundo das coisas. Com estes textos, Simmel alinha as primeiras ideias de seu método indutivo, para mais tarde ganhar substância na construção de sua obra.

Conforme Otthein Rammstedt, que escreve o posfácio da obra, estas escrituras de Simmel, pequenas e saborosas peças lúdicas, se inscrevem em um processo indutivo que visa "descobrir o sentido do todo a partir de qualquer ponto (detalhe) possível", sendo rechaçadas pelos colegas acadêmicos. Trata-se na verdade de uma adaptação do método Morelli, discutido nos círculos artísticos e salões de Berlim, dos quais Simmel participava ativamente, e que avaliava a autenticidade das obras pictóricas a partir da observação de detalhes aleatórios. Em Imagens Momentâneas, o ensaio deixa de ser um "tratado breve de conteúdo científico ou literário (para se apresentar) como uma forma mais ligeira e artisticamente redonda". (Rammstedt)

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No conto Só o dinheiro não traz a felicidadeSimmel nos descreve uma conversa de salão entre dois indivíduos que avaliam o valor do dinheiro na sociedade, e faz em seguida a avaliação do problema levantado pelo diálogo, "a possessão (do dinheiro) nos domina no afã de ter sempre mais e nos enredamos em inúmeros assuntos irremediáveis, que são alheios à salvação da alma", para proceder à conclusão da moral, "as coisas espirituais estão mais além da questão de ter ou não ter".

O dinheiro cobiçado tem seu valor apenas se o temos, pois só assim podemos usufruir dos prazeres que ele pode oferecer. Ao contrário, os prazeres da beleza das estrelas ou de uma paisagem campestre residem no encanto proporcionado ao espírito, não precisamos tê-los como posse. Simmel nos fala sobre o caráter desses valores, "uns podemos possuir sem que nos façam felizes, enquanto outros nos fazem felizes, ainda que não os tenhamos".

Em outro conto, Apenas tudo (já parcialmente publicado neste blog), há o valor relativo da felicidade. Um vagabundo, de passagem, solicita comida a uma mulher jovem e bonita, cujo marido avaro saiu de viagem e deixou tudo trancado a chave. A mulher, compadecida do homem, e não podendo lhe oferecer uma migalha de pão, toma-o pelo pescoço e lhe dá um beijo. Simmel chama a atenção para o gesto despojado, de certo modo ele mesmo libertador de suas próprias amarras: a impossibilidade de lhe dar menos (comida, dinheiro, bens materiais), lhe dá mais, um prazer extasiante e imensurável.

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Gostaria de comentar algumas palavras acerca do título da obra. Simmel não por acaso chama o conjunto de 'águas-fortes literárias e filosóficas' como imagens momentâneas, pois o que são senão olhares, contemplações fugazes, ao sabor do ritmo característico da cidade grande, moderna, espaço ideal para a circulação do dinheiro, onde o tempo cronometrado tem a função de reger os movimentos tal como o sincronismo de uma engrenagem, sempre na busca da pontualidade, da precisão. 

As imagens se constituem a partir do deslocamento incessante, da velocidade desses movimentos, com o ritmo ansioso perpetrado às pessoas. A intensidade da vida moderna mais a presença onipresente do dinheiro são fatores que propiciam a acelerada indiferença, a condição blasé, e como consequência, a crescente impossibilidade de não nos reconhecermos no outro, ainda que este outro integre a minha realidade cotidiana. O desenvolvimento da ideia de modernidade e vida subjetiva em Georg Simmel prossegue, em um ensaio ainda em preparação. 

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Deixo-lhes a seguir a tradução do conto Leilão (Subasta), que integra Imágenes Momentáneas, Gedisa Editorial, Buenos Aires, 2007.


Leilão

Na prefeitura de um pequeno povoado, no coração da Alemanha, descobri dois anúncios um ao lado do outro: em um se convidava a um leilão onde se arremataria um dos carneiros mais cobiçados do município; ao cabo, uma criança órfã, que o município estava obrigado a cuidar, contaria com os recursos mínimos para alimento e manutenção. Isto refletia tão perfeitamente a escala com que o mundo acostuma a taxar as coisas, que somente um sonho que tive uma vez possibilita ilustrá-lo da forma mais pura, como a regra faz com o exemplo.

Via um número enorme de almas que se apertavam ao redor de uma mesa de leilão e sobre ela o objeto em torno da qual se debatiam apaixonadamente: um corpo, cuja imagem se desvaneceu depois de um momento. O sonho mesmo não teve tempo de esperar pela definição; mas através de transições quase imperceptíveis, a cena se converteu em algo distinto. Na mesa de leilão havia uma alma que estava tão intimidada e tão comprimida em si mesma, que parecia muito pequena, ainda que fosse grande, e o arrematador perguntou quanto pediam os senhores corpos por seu alimento e manutenção, pois ela devia dispor dos recursos mínimos. Aí não se encontraram muitos interessados. Uns cotizavam muito alto, mostravam grande preocupação pelos gastos e exigências que uma alma solicitaria, e pensavam em assegurar de que tampouco iria causar transtornos.

O preço foi em seguida reduzido por outro que não estava em absoluto preocupado. Este dizia que já dispunha de uma alma como aquela em sua casa e que alimentar outra não fazia diferença. Assim, ao final se vendeu ainda mais barata a alguém que em realidade não tinha alma, e que no caso de possuir uma, não lhe acarretaria o mais insignificante gasto.



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