25 abril 2013

Sor Juana Inés de la Cruz



Não farei aqui um relato tosco e incompleto da obra de Sor Juana Inés de la Cruz, mas já era tempo de escrever uma poucas linhas sobre esta mulher seiscentista, que viveu no México. Dela fala Carlos Fuentes, responsável pelo meu deslumbramento original pela vida e obra de Juana de Asbaje, seu nome de nascença, em La Gran Novela Latinoamericana

"Sua brilhante inteligência a conduziu à corte do Vice Reino quando alcançou a adolescência. Então, assombrou aos professores universitários com seu conhecimento de tudo o que havia sob o céu, desde o latim até as matemáticas. Ganhou elogios e fama, porém logo se deu conta das dificuldades de ser uma mulher escritora no México. (...) Assim que foi para a Igreja, esperando, quem sabe, encontrar a proteção que, ao final, se voltaria contra ela. (Em) sua cela no Convento de São Jerônimo (...) colecionou mais de quatro mil volumes, seus documentos, suas penas e tinta, seus instrumentos musicais (...)".

E poderia prosseguir, avançando na delicada descrição de Fuentes, ou trazendo elementos  mais consistentes, presentes nos quatro grossos volumes de sua obra, publicados pela Fondo de Cultura, os quais sigo namorando no espaço cultural Cervantes. 

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Abaixo, atrevo-me a verter ao português alguns versos de Sor Juana de la Cruz, com o desejo de dividir com o internauta um pouco da beleza e do encanto que compõem a sua escritura. Aqui, ela expõe a serena confissão, entorpecida pelo vagar de quem espreita e espera, conduzida pelo ondular tormentoso de seu coração. 


Escuta-me com os olhos
já que estão tão distantes os ouvidos,
e de ausentes desgostos
nos ecos de minha pluma meus gemidos;
e já que a ti não chega minha voz bruta,
ouve-me surda, pois me queixo muda.

Se vês o céu claro
tal é a sinceridade da alma minha;
e se, de luz avaro,
de penumbras se encobre o claro dia,
é, com sua obscuridade e sua inclemência
imagem da minha vida nesta ausência.

(...)

Que vida é esta minha,
que rebelde resiste à dor tanto?
Por que, néscia, porfia,
e nas amargas fontes do meu pranto
atenuada, não acaba de extinguir-se,
se não pode em meu fogo consumir-se? 



21 abril 2013

As Imagens Momentâneas



Para se compreender a coisificação do mundo e suas distorções regidas pela circulação monetária, um caminho instigante é o que passa pelo espírito subjetivo das apreensões cotidianas em Georg Simmel. Em seu Imagens Momentâneas, temos um conjunto de contos, fábulas, sátiras, até mesmo um poema, que foram anteriormente publicados na revista de vanguarda Jugend, de Munique, sob os auspícios do movimento Jugendstil (a Art Nouveau alemã).  

Temos neste pequeno volume o olhar corriqueiro, as percepções imediatas da vida diária, tentativas de captar os signos dos tempos modernos. Simmel se entrega à liberdade em escrever sátiras, contos, fábulas, com o mesmo espírito linguístico-literário aplicado a Nietzsche, reflexões do sentido sem sentido, um movimento de reconciliação entre o olhar mais superficial e o espírito mais profundo das coisas. Com estes textos, Simmel alinha as primeiras ideias de seu método indutivo, para mais tarde ganhar substância na construção de sua obra.

Conforme Otthein Rammstedt, que escreve o posfácio da obra, estas escrituras de Simmel, pequenas e saborosas peças lúdicas, se inscrevem em um processo indutivo que visa "descobrir o sentido do todo a partir de qualquer ponto (detalhe) possível", sendo rechaçadas pelos colegas acadêmicos. Trata-se na verdade de uma adaptação do método Morelli, discutido nos círculos artísticos e salões de Berlim, dos quais Simmel participava ativamente, e que avaliava a autenticidade das obras pictóricas a partir da observação de detalhes aleatórios. Em Imagens Momentâneas, o ensaio deixa de ser um "tratado breve de conteúdo científico ou literário (para se apresentar) como uma forma mais ligeira e artisticamente redonda". (Rammstedt)

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No conto Só o dinheiro não traz a felicidadeSimmel nos descreve uma conversa de salão entre dois indivíduos que avaliam o valor do dinheiro na sociedade, e faz em seguida a avaliação do problema levantado pelo diálogo, "a possessão (do dinheiro) nos domina no afã de ter sempre mais e nos enredamos em inúmeros assuntos irremediáveis, que são alheios à salvação da alma", para proceder à conclusão da moral, "as coisas espirituais estão mais além da questão de ter ou não ter".

O dinheiro cobiçado tem seu valor apenas se o temos, pois só assim podemos usufruir dos prazeres que ele pode oferecer. Ao contrário, os prazeres da beleza das estrelas ou de uma paisagem campestre residem no encanto proporcionado ao espírito, não precisamos tê-los como posse. Simmel nos fala sobre o caráter desses valores, "uns podemos possuir sem que nos façam felizes, enquanto outros nos fazem felizes, ainda que não os tenhamos".

Em outro conto, Apenas tudo (já parcialmente publicado neste blog), há o valor relativo da felicidade. Um vagabundo, de passagem, solicita comida a uma mulher jovem e bonita, cujo marido avaro saiu de viagem e deixou tudo trancado a chave. A mulher, compadecida do homem, e não podendo lhe oferecer uma migalha de pão, toma-o pelo pescoço e lhe dá um beijo. Simmel chama a atenção para o gesto despojado, de certo modo ele mesmo libertador de suas próprias amarras: a impossibilidade de lhe dar menos (comida, dinheiro, bens materiais), lhe dá mais, um prazer extasiante e imensurável.

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Gostaria de comentar algumas palavras acerca do título da obra. Simmel não por acaso chama o conjunto de 'águas-fortes literárias e filosóficas' como imagens momentâneas, pois o que são senão olhares, contemplações fugazes, ao sabor do ritmo característico da cidade grande, moderna, espaço ideal para a circulação do dinheiro, onde o tempo cronometrado tem a função de reger os movimentos tal como o sincronismo de uma engrenagem, sempre na busca da pontualidade, da precisão. 

As imagens se constituem a partir do deslocamento incessante, da velocidade desses movimentos, com o ritmo ansioso perpetrado às pessoas. A intensidade da vida moderna mais a presença onipresente do dinheiro são fatores que propiciam a acelerada indiferença, a condição blasé, e como consequência, a crescente impossibilidade de não nos reconhecermos no outro, ainda que este outro integre a minha realidade cotidiana. O desenvolvimento da ideia de modernidade e vida subjetiva em Georg Simmel prossegue, em um ensaio ainda em preparação. 

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Deixo-lhes a seguir a tradução do conto Leilão (Subasta), que integra Imágenes Momentáneas, Gedisa Editorial, Buenos Aires, 2007.


Leilão

Na prefeitura de um pequeno povoado, no coração da Alemanha, descobri dois anúncios um ao lado do outro: em um se convidava a um leilão onde se arremataria um dos carneiros mais cobiçados do município; ao cabo, uma criança órfã, que o município estava obrigado a cuidar, contaria com os recursos mínimos para alimento e manutenção. Isto refletia tão perfeitamente a escala com que o mundo acostuma a taxar as coisas, que somente um sonho que tive uma vez possibilita ilustrá-lo da forma mais pura, como a regra faz com o exemplo.

Via um número enorme de almas que se apertavam ao redor de uma mesa de leilão e sobre ela o objeto em torno da qual se debatiam apaixonadamente: um corpo, cuja imagem se desvaneceu depois de um momento. O sonho mesmo não teve tempo de esperar pela definição; mas através de transições quase imperceptíveis, a cena se converteu em algo distinto. Na mesa de leilão havia uma alma que estava tão intimidada e tão comprimida em si mesma, que parecia muito pequena, ainda que fosse grande, e o arrematador perguntou quanto pediam os senhores corpos por seu alimento e manutenção, pois ela devia dispor dos recursos mínimos. Aí não se encontraram muitos interessados. Uns cotizavam muito alto, mostravam grande preocupação pelos gastos e exigências que uma alma solicitaria, e pensavam em assegurar de que tampouco iria causar transtornos.

O preço foi em seguida reduzido por outro que não estava em absoluto preocupado. Este dizia que já dispunha de uma alma como aquela em sua casa e que alimentar outra não fazia diferença. Assim, ao final se vendeu ainda mais barata a alguém que em realidade não tinha alma, e que no caso de possuir uma, não lhe acarretaria o mais insignificante gasto.



20 abril 2013

Alfonsina Storni



Não sei dizer em que circunstância tive o primeiro contato com seus poemas, talvez uma crônica sobre sua obra, ou folheando ao acaso um livro seu, em uma livraria portenha... O que sei é que faz poucos anos que descobri o tom solene e revelador de seus versos. Se no início me sentia um tanto premido pelo pesar de sua angústia, hoje me deixo levar pelos movimentos amplos de seus sentimentos, atento para as sutis impressões, variantes de um amor que não se extingue, de estorvos que não se debelam. 


 Llévame

Quiero olvidar que vivo; llévame a donde sea;
enrédame en tu alma, la aurora centellea.

Tómame entre tus manos como blanco capullo
y muéstrame a los dioses con gloria y con orgullo.

Llévame! Está la noche muy negra y muy sombría:
la muerte por los mundos anda de cacería.

Hazme olvida lo mucho que me pesa en los hombros
esta carga pesada de pesados escombros.

Libértame! En tus manos yo quiero pesar menos
de lo que pesan - luces - los pensamientos buenos.

Liviana más que el aire, más que el aire liviana;
como globo de aromas que asciende en la mañana.


Palabras Degolladas

Palabras degolladas,
caídas de mis lábios
sin nacer;
estranguladas vírgenes
sin sol posible;
pesadas de deseos,
henchidas...

Deformadoras de mi boca
en el impulso de asomar
y el pozo del vacío
al caer...
Desnatadoras de mi miel celeste,
apretadas en vosotras
en coronas floridas.

Desangrada en vosotras
- no nacidas -
redes del más aquí y el más allá,
media lunas,
peces descamados,
pájaros sin alas,
serpientes desvertebradas...

No perdones,
corazón.


Frase

Fuera de ley, mi corazón
a saltos va en su desazón.

Ya muerde acá, sucumbe allí,
cazando allá, cazando aquí.

Donde lo intente yo dejar
mi corazón no se ha de estar.

Donde lo deba yo poner
mi corazón no ha de querer.

Cuando le diga yo que sí,
dirá que no, contrario a mí.

Bravo león, mi corazón
tiene apetitos, no razón.




Berzep, o trapezista




Berzep pensativo, a devorar cada circunstância de seus movimentos acabrunhados. Encontra a cidade grande assim, coberta por uma indiferença branca, gélida, o espaço público e seus transeuntes, homogêneos, expressões sem cariz, o opaco de uma passagem que se dispersa célere, os rastros na neve não são marcas, mas silêncio lúgubre e profundo. A luz mortiça do entardecer, vaga, os ramos secos e inertes... Pretendo falar, mas se rompe e chora, o que morre ao nascer dentro da alma... Como dizer o mal que me devora, o mal que me devora e não se acalma... poemas de Storni, cantados nas noites de verão, a vida do circo... lembra-se dos rostos iluminados, quase todos, os anões gêmeos, Lena, a domadora de leões, Rino, o homem-bala, Serena, a mulher barbada, Jeremias, o malabarista, alinhados do lado de fora do picadeiro, aguardando o desfecho do espetáculo. Sonhava com o pensamento de que talvez fosse o único palhaço trapezista do mundo! Saltava do trapézio acompanhado pelo foco de luz e finalizava a noite sob os aplausos, junto com Lídia Rosa. 

Saíam saltitantes e retornavam com os demais, para as despedidas... Tempos de circo, e agora o vento espiralado, a sondar o fronte impassível, mergulhado em dúvidas, o bloco de edifícios, a mãe conduzindo seu bebê... paisagem fria, sem compaixão... As primeiras noites, recém-chegado ao circo, era o incumbido de servir a refeição aos bichos, e em especial a Birko, o elefante, com quem gostava de confidenciar seus sonhos antes de adormecer... Observa os trilhos, caminhos para destinos longínquos, desconhecidos, enquanto reflete, com a cidade grande prestes a lhe propor uma vida puramente objetiva... Oh suave amargura, essa carícia sem fim de um tempo generoso, feito de poucas palavras, regido por olhares intensos, solidários... por amor e surpresas... Lídia Rosa: hoje é terça e faz frio. Em tua casa de pedra gris, tu dormes teu sono em um recanto da cidade. Ainda guardas teu peito enamorado, já que de amor morreste?... 

Uma vez mais retoma o presente com a alma sem um único desejo, das pessoas saturadas com seus passos tíbios e definidos... e mais uma vez os dias de trapézio, os pássaros das noites sem brisa, os violões plangentes, os anões gêmeos, Birko... Lídia Rosa.



12 abril 2013

O Chile e a Unidade Popular



“Conquanto não conseguisse obstar a vitória da UP (Unidade Popular), o que se afigurou para Nixon como outra falha da CIA, a ‘spoiling compaign’ promovida durante anos havia produzido importantes e profundos efeitos na sociedade chilena, dentro da qual se desenvolvera agudo antagonismo de classes, que se refletiu nas eleições para a presidência. E a ‘scare campaign’, como parte da Track I, prosseguiu. O objetivo sempre foi alarmar a população e o meio empresarial, demonstrando a reação que a eleição de Allende provocaria no estrangeiro e as graves consequências para a economia do Chile, de forma a provocar o pânico financeiro, um ‘crash’, a instabilidade política, forçando os militares a intervirem para impedir a investidura de Allende na presidência do Chile”.
...

Trecho desse notável e ao mesmo tempo dramático painel do Chile, nos anos da Unidade Popular (1970-1973). Com um texto denso em detalhes, avaliando sempre com muita isenção e serenidade as políticas tomadas no calor do momento pelo governo da UP, Moniz Bandeira nos mostra o passo a passo da história política e econômica desses anos turbulentos, desde o governo de Eduardo Frei, e adentrando o período Allende, simultaneamente ao quadro político na Bolívia de Juan José Torres e do Uruguai de Pacheco Areco e o movimento Tupamaro. Do Brasil, a lamentável participação do governo Médici, os comentários do embaixador Câmara Canto, atento a cada movimentação golpista, além da confirmação escancarada da participação do governo dos EUA, com base nos mais de 2.000 documentos desclassificados da CIA.

Chegar ao final desta obra grandiosa me deixa dolorosamente em suspenso, em estranho estado de comoção distanciada, repassando as feições de Allende, as horas cruciais no La Moneda, o entusiasmo do povo chileno nas imagens de Patrício Guzmán... admiração pela ousadia dos gestos decididos, desprezo pela pusilanimidade do ato final.