31 dezembro 2010

Recortes urbanos (1)


Berlim, 2010


Do meu ponto de vista, tinha uma parte do seu rosto, o nariz afilado, os lábios graciosamente desenhados, a face acetinada, o queixo discreto e mais abaixo, as mãos apostas sobre o colo, os dedos longilíneos, sem anéis, unhas pintadas em grená, as pernas dobradas, as botas, o inevitável tom negro recobrindo-a. Uma mulher em seus quarenta anos, que me seriam ditos ao certo se pudesse apreciar seus olhos, teimosamente encobertos pela recurvada aba do chapéu.

Eu estava em pé, do outro lado do corredor, ela sentada nesses bancos voltados para trás, bem ao lado da porta de saída. Meu ponto se aproximava, talvez mais três ou quatro minutos para desvelar por completo o brilho de seu rosto. Abaixar-me acintosamente, por sob a aba do chapéu?... Na altura da Potsdamerplatz, um fluxo de pessoas que entra e sai, o vento gélido que açodou a todos por um instante.

As portas se fecham, o veículo prossegue. Surge uma vaga no assento diretamente em frente ao dela, e então por fim, a vejo mover a cabeça para o interior da condução, as mãos a esfregar-se umas às outras. Tem os olhos azuis, marcados pela reminiscência de um outro tempo. Logo tornou a olhar através da janela. Os lábios ofereceram um breve sorriso, acaso um espasmo de sua distração, um detalhe da paisagem, uma recordação efêmera?...

Outra parada, a minha. As portas que se abrem, a ruptura, o corpo expelido para o frio inclemente, que absorve o ruído do motor, a distanciar-se em definitivo.



16 dezembro 2010

Memórias de ontem e de sempre


Albergue da juventude, Amsterdã, 2001

Por uma dessas razões insondáveis do ser, tenho me voltado para o silêncio das memórias, tomadas aqui e ali, vivenciadas em um átimo, ao saboroso acaso. Passagens como registros que anunciaram mudanças, expressão de movimentos sensíveis, que se desdobraram em delicadas intervenções... A russa que, sem falar uma língua cognoscível, o impediu de perder-se nas mãos de um farsante, em uma fronteira esquecida no mundo... A linda adolescente, subindo de costas a acentuada ladeira, para não perder o belo desenho do casario e, ao fundo, o mar azul... O publicitário pressionado, que exausto, cochilava no trem, a caminho de casa, e sonhava com uma cidadezinha bucólica chamada Willoughby... A criança com a cabeça apoiada no colo, ouvindo-lhe as histórias do mundo...

Ou o último minuto do avô, ainda jovem, na casa dos pais... sua saída pé ante pé, do quarto com seus seis irmãos em sono profundo. O instante imóvel à porta e voltando-se para apreciar um por um os irmãos, dar uma olhada geral e partir para nunca mais voltar. Um último olhar, o fim de um tempo, o começo de outro, novos ares, incertos e desafiadores...

Momentos de singeleza, suspensos em um tempo que foi e que, naturalmente, ressurgem no presente.

***

Nenhuma despedida é fácil, nem parecida com outra. Cada uma guarda sua dor, seus mistérios. Nenhuma parece durar além do tempo necessário, me refiro à despedida trágica, aquela que parece nos despir um pouco mais para a morte, que desponta como um rasgo na vida, rompendo com uma maneira de ver o mundo, para sobrepor algo mais dramático... A professora de português do ginásio, odiada ao longo do curso por suas exigências de leituras, mas que, naquele último encontro, fez resplandecer seu brilho de educadora à saída da sala de aula, o bondoso sorriso que havia guardado para uma ocasião especial, e logo retirando-se pelo caminho dos deuses...

Ou o olhar da última visita... o difícil foi saber, desde o princípio, que tratava-se da derradeira visita. Ao chegar, os olhos da avó perscrutaram detidamente o ambiente, as pequenas coisas, sem se preocupar com a conversação dos presentes. O sorriso derramava-se por todo o espaço, todo o tempo, apresando-lhe as palavras... Por fim levantou-se, beijou o neto e caminhou até a porta. Avançou mais um pouco e, como é tão comum à espécie humana, voltou-se ainda uma vez, desejando quem sabe apreender o inapreensível, e o fitou como jamais o fizera antes...

***

Abandonar um parêntesis da vida, uma breve ficção da existência. A manhã despontando através dos janelões, a quietude do salão antes do burburinho do café da manhã, o olhar atento perdido na paisagem gelada do lado de fora, os pensamentos fomentados incessantemente, o desejo de ficar, em conflito com a necessidade de reassumir a realidade da vida cotidiana, e assim os minutos contados antes do inevitável regresso...

Ou o oposto, os últimos passos na cidadezinha não amada, mas que o recebera por um longo período. O passeio final, para ver o que até então não tinha visto, as pessoas com suas faces altaneiras, as ruas com sua mansa sonoridade, os recantos não mais odiados, o sol, bendito sol, que sempre estivera ali e que irrompia em sua poderosa energia... Era seu tempo de juventude, e sabia que naquele momento reencontrava a liberdade. A despedida significando o abandono de um imobilismo, mais do que prematuro, opressor...

***

O registro memorial do particular, aqueles notáveis, de significativos desdobramentos, como também os impressos nas esferas do universal, de serena manifestação... O sujeito perdido em um cruzamento, abordado pela velha que lhe expõe a beleza de cada destino... A criança com os pés descalços, sentindo a areia quente e fofa do caminho... O homem velho, que se aconselha com a mãe, há muito não mais presente no mundo... O olhar marejado da mulher, a compartilhar a desventura do amado... O rapaz indeciso na plataforma, que resolve tomar o primeiro trem, redimensionando seu destino... A garota no banco da praça, detida nas minúcias da leitura, deixando-se levar pelo encanto da narrativa e pelo passo do tempo...

Múltiplas e surpreendentes lembranças, cuja simples retomada me renova, neste momento de expectativa...



13 dezembro 2010

Fábulas de hoje e de sempre


Pois foi, então, que o maligno resolveu dar as caras. Estava cansado de apostar a alma dos humanos, de preconizar maravilhas, de seduzir com sua conversinha bem posta, de tal modo que decidiu retornar com uma nova atitude.
Fazia já um tempo que observava, do alto (isso me parece um abuso de sua parte, mas em se tratando do demo...) aquele fazendeiro de incomensuráveis posses, mergulhado em abundante fortuna e ainda assim, insatisfeito. Um homem que vivia uma vida de consumo exacerbado, sempre acompanhado por belas mulheres, grandes empresários, ainda que não passasse de um velho solitário e desgostoso. O detalhe que interessava ao demônio era sua ansiedade por conquistar, por apropriar, por acumular, fazendo desse expediente seu entretenimento preferido.
Foi fácil ao tinhoso se apresentar e, após uma breve demonstração, convencer o fazendeiro de seu poder.
- O que você quer de mim?
- Nada, só estou aqui para lhe oferecer...
- Oferecer o quê?
- Bancar todos seus desejos materiais!
- Todos meus desejos materiais... - um leve sorriso iluminou as faces gordas - e o que você ganha com isso?
- Bom, deixe que eu me preocupe com essa questão...
O fazendeiro não viu problemas com a proposta.
- E o que devo fazer?
- Apenas me diga sim, um simples aceno positivo - comentou um tanto enfastiado com a conversa - e as coisas se arranjarão para você e para mim...
O fazendeiro assentiu, o demo não precisou esperar mais e, pluft, desapareceu no instante seguinte. Tudo muito fácil, rápido, cordato, sem assinaturas, apenas a essência da palavra dita (ou no caso, do gesto assentido). Para o latifundiário ambicioso, nada mais adequado e promissor, para o diabo, nada mais propício uma nova aceitação humana envolta de seus projetos...
Ocorre que para dar por um lado, o demônio achou por bem tirar de outro. Se apareceu para oferecer com uma das mãos, simplesmente decidiu tirar com a outra, sem mais delongas. Uma rápida olhada na região e, mais uma vez do alto, observou, espremida às bordas de um riacho pedregoso, uma pequena propriedade arrumada em um ponto esquecido de uma planície esturricada, que destoava da fertilidade das terras do fazendeiro.
Morava ali um casal de meia idade, que tirava o sustento da terra áspera. A casa era pequena e bem instalada, caiada, de telhado vermelho e janelas acortinadas. Nos fundos, chamava a atenção uma trilha de pedregulhos, que serpenteava um pomar de árvores frutíferas e pequenos cultivos, conduzindo até um banco de madeira, tão rústico quanto acolhedor. Dali podiam vislumbrar as dimensões da planície e a imensidão da noite.
O demo não pensou muito: Se dou para aquele, tiro destes. Sua jogada era de perversa simplicidade, conduzir a todos os envolvidos, o fazendeiro ali e o casal chacareiro aqui, ao desconsolo profundo, aquele pelo excesso, estes pela falta aguda. Nem precisou aparecer em frente ao casal e uma vez desencadeada a ação maligna, pôs-se a acompanhar tranquilamente, de tempos em tempos com um copo de scotch nas mãos esguias, Isso será divertido, e descarregou no éter aquela gargalhada metálica, saída das profundezas de seu ventre indecoroso...
Quanto ao ambicioso latifundiário, ele se abarrotou ainda mais de bens e serviços. Assacou, possuiu, comeu, bebeu, defenestrou, abordou, granjeou, expoliou, apresou, comprou com requinte e mais tarde, perdulariamente... não sendo suficiente, achincalhou, azucrinou, humilhou, apegou-se e depois descartou, consumiu e regurgitou, até perder-se em meio à mais desnecessária fartura. Ao fim e ao cabo, não teve mais como mover-se, em meio ao olhar parvo, devastado pela matéria e acuado pelos pensamentos insones, já impossibilitados em alcançar algum prazer... E desconsolou-se profundamente. O funesto esfregou as mãozinhas avermelhadas, com mais uma daquelas gargalhadas que rasgavam a garganta, impregnadas do mais completo desprezo...
Quanto ao casal, nada foi mais doloroso que o passar dos dias, progressivamente mais longos e difíceis. Trabalharam de sol a sol, replantando as culturas fenecidas, carregando o peso de um esforço laboral cada vez mais hercúleo. Comiam o que podiam colher e o que podiam colher lhes garantia a sobrevida física. Faltou provimento de lenha para as noites mais frias e o descanso dos domingos. O silêncio nas imediações tornou-se abissal, e a aspereza da paisagem, cada vez mais pronunciada. Até para a sádica apreciação do diabo, o cenário de desconsolo se aproximava do limite supremo. As faces covadas, os braços ressequidos, os passos cada vez mais miúdos buscavam durante os dias o sopro da vida. Mas havia as noites, e com elas, os gestos que os impregnavam de esperança.
Quando o breu se tornava mais profundo e sequer se percebia o chão do próximo passo, lentamente se esgueiravam pelo caminho de pedregulhos, até o banco de madeira, e ali sem nada mais a dispor, voltavam-se para os céus. E encontravam o luzir das estrelas, com o qual se punham a imaginar o futuro. Nos dias de lua cheia, havia a oportunidade de espreitarem os rostos, tocar um ao outro, sentir o calor das faces, desvelar o sorriso embargado... Pouco falavam, a tudo intuíam. Sentiam-se, nestes momentos, fortes o suficiente para não se desconsolarem. Se os bens materiais, o dinheiro, a ambição, os prazeres supérfluos, as coisas forjadas pelos homens acabaram-lhes negadas pelo demo, as benesses de Deus permaneciam intocadas e assim, disponíveis para os corações atentos. A beleza fugidia da lua, o canto suave do pássaro noturno, o mar de estrelas a enaltecê-los em seus sutís desejos, o deslizar da lágrima perdida, os carinhos tão solenes, o vento que emaranhava os cabelos, a suavidade das sobrancelhas, o canto dos lábios, o desenho das marcas de expressão, os olhares cúmplices e mais do que tudo, o amor renovado a cada noite.
Contra essas pequenas dádivas, o diabo nada pode fazer e dando-se por vencido, escafedeu-se para outras paragens...


02 dezembro 2010

Carlos Drummond de Andrade (2)


Segredo
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A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.
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Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.
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Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.
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Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.
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(nunca, absolutamente nunca será demais nos alimentarmos de Drummond!)
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Carlos Drummond de Andrade (1)


Poema de Sete Faces
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Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
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As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
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O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Pra que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
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O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
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Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
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Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
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Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
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