24 maio 2010

O discurso segregado




Na verdade, o discurso que se pretende organizador, a pré-configuração midiática do mundo que norteia a sua refiguração pelo sujeito receptor. Nas palavras de Charaudeau, o propósito como componente do contrato de informação midiática, inscreve-se num processo de construção do evento, que deve apontar para o que é 'notícia'. Na mídia hegemônica, o propósito que se formula nos preceitos e nas propostas burguesas fenece nos braços de seus iguais, como se fosse possível, ainda, manter o discurso envolto em um privilégio classista, isento da socialidade e da imprevisibilidade expressas pelas vozes do espaço público...

Como definiu brevemente um amigo, a comunicação midiática abre passagem para as relações de mercado, e isso para preservar as relações de poder. As vozes e as imagens dão suporte um discurso edulcorado, sedutor, despreocupado com a verossimilhança (no caso dos telejornais globais, com o recorte preciso) da narrativa. Exalta-se, distorce-se, oculta-se, em nome da hierarquização da palavra e da fragmentação do estar-aí como agente social, tudo em busca da preservação dos índices verticais de audiência, da acumulação de poder.

Como contraponto a essa concentração dominante na comunicação, surgem os meios tecnológicos, a narrativa transmidiática e o cenário hipersegmentado, que abrem espaço para o que se denomina de pervasividade comunicacional, ou seja, a ampla pulverização da informação; ela escorre e circula livre de entraves pela sociedade, demolindo três posturas clássicas de controle da mídia hegemônica, a saber:
1) a não divulgação do fato ocorrido;
2) a mediação falsa do fato ocorrido;
3) o fato ocorrido divulgado fora de seu contexto.

No primeiro caso, dentre tantos outros, temos os dados do Iraque pós invasão estadunidense, dois milhões de viúvas, cinco milhões de órfãos, quatro milhões de refugiados, sem meios de sobrevivência. Um quadro jamais analisado, que se agrava com a presença de mais de cinquenta milícias, que atuam à margem da lei, com total impunidade.

A mídia hegemônica não mostra a realidade em suas minúcias, repetindo o discurso genérico e difuso de caos e violência, cuja construção semântica exime a responsabilidade das forças de ocupação estadunidenses. Poderia prosseguir na apresentação dos dados ocultos dessa tragédia, onde morreram mais iraquianos desde a invasão (2003) do que em toda a história recente do país. Por exemplo, posso destacar informações que, se ocorridos na Venezuela ou em Cuba, seriam suficientes para um alarde mundial: nesse período de seis anos (até 2009), foram assassinados 24 juízes, 135 advogados, 200 jornalistas...

No segundo caso, cito o golpe de Honduras em 28 de junho do ano passado, tomado por nossa mídia hegemônica como um fato menor, cujos desdobramentos seguiram um caminho natural de substituição forçada no poder, questionando a diplomacia brasileira ao ter dado asilo ao presidente Zelaya, de setembro de 2009 a janeiro de 2010. A voz da CNN sobressaiu como um fio condutor, essa leitura distanciada e encravada no Olimpo, pautando os interesses políticos estadunidenses em meio à cronologia dos acontecimentos (e que encontrou ressonância e foi prontamente encampada por nossos meios), analisando os fatos do ponto de vista golpista, pretendendo transformar em um fait acompli o gesto de Micheletti e seu bando, sob os auspícios dos deputados republicanos, de origem hispanoamericana e domiciliados em Miami...
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Caberia aqui, também, lembrar do golpe midiático da Venezuela, razoavelmente abordado neste blog. Um golpe que se desdobrou graças à concentração do poder midiático, e que se desfez graças à pervasividade comunicacional adstrita às plataformas criadas instantaneamente pelo celular e pela internet.

No terceiro caso, que tem sido a evasiva mais comum nos últimos tempos, destaco um exemplo comentado por Pascual Serrano em seu excelente livro, Desinformación, referente à Bolívia. A partir de uma frase, divulgada em um jornal espanhol (El Pais), e onde há a ausência de elementos de contexto, A corrupção e os contratos petroleiros minam a popularidade de Evo Morales na Bolívia, inserta-se a conclusão, a popularidade baixou para 62%. Segundo Serrano, tal índice evidenciaria, em uma leitura mais cuidadosa e completa, que Morales seria o quarto presidente latinoamericano mais bem cotado!

Outro bom exemplo é o esforço para se projetar las damas de blanco em Cuba, como um movimento de oposição, nascido nas manifestações callejeras espontâneas, enquanto se oculta que o movimento - cerca de 30 mulheres de presos políticos cubanos - têm em suas marchas a proteção da polícia feminina contra manifestantes castristas.

O movimento, como seria de se esperar, chegou a Miami, com Gloria Stefan convocando uma concentração. Nessa ocasião, desfilou um conhecido terrorista, Posada Carriles, que em 1973 foi responsável por um atentado contra um avião da Cubana de Aviación, onde morreram 73 pessoas. Permanece circulando à vontade e o governo estadunidense ignora o pedido de extradição por parte do governo cubano.

Discursos assim, produzidos sem se preocupar com o contexto dos acontecimentos, dá ao leitor/espectador a impressão de uma análise hipoteticamente abrangente, mas que esconde (ou distorce) os fatos essenciais. É possível recriar o processo histórico com dados estatísticos, com declarações repetidas sobre uma suposta verdade, construindo-se uma edição tão acabada quanto manipulada da realidade.

O que nos vacina desta epidemia alienante é, repito, a proliferação das plataformas midiáticas, que oferecem à sociedade um amplo espectro de fontes informacionais, para a elaboração de uma visão de mundo mais autêntica. Não ficamos na dependência de uma notícia do Jornal Nacional como há vinte anos, não somos mais conduzidos por edições maquiavélicas eivadas de interesses, e mais além, não somos limitados ao entretenimento fastidioso dessa tevê hegemônica.
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Com as alternativas múltiplas de difusão de informação e conhecimento, o cidadão passa a dispor de opções para incorporar uma atitude menos viciada da morfina distribuída em doses massivas, colocando-se em posição de eleger (cada vez mais como protagonista e não como mero figurante) caminhos mais interessantes para construção de uma realidade social mais justa e democrática.



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