30 setembro 2025

Kerouak, quem diria, já era


McCoy Tyner, sempre um espetáculo

Não basta nestes tempos ser apenas um escritor cuidadoso, versátil, imaginoso, ele tem de ser mais, e suas narrativas têm de se sincronizar com os temas pulsantes destes tempos. Parece um círculo vicioso sem graça, mas é isso, você começa a escrever, avança e não pode esquecer-se dos assuntos que mobilizam no presente momento, LGBTQIAPN+, o autoritarismo político (decorrente da ascensão de Trump e do filme brasileiro Ainda Estou Aqui); dos grupos marginais da sociedade; dos povos originários aos precarizados das margens urbanas, ou a violência de gênero. Há um chamariz encantado nesses temas que promovem uma atenção sempre especial, 

Não basta escrever sobre a memória social, em seus pequenos desdobramentos cotidianos, ou sobre a velhice e seus limites. Sobre a morte e outras surpresas, por exemplo, como escreveu Benedetti. Adquiri há pouco, aqui na livraria do cine Petrobras o livro finalista do Prêmio São Paulo, No Muro da Nossa Casa, um pequeno romance de Ana Kiffer, além de escritora, professora de literatura na PUC-Rio. Quero ler, claro que o tema me agrada, mas também quero espreitar os caminhos que a conduziu para que este livrinho de menos de cem páginas ganhasse destaque, dentre certamente as centenas de outros que concorreram. 

Talvez seja um bom sinal ter a quarta capa e a orelha escritos por escritor e político conhecidos e respeitados. Talvez. Há uma sistemática semântica (atravessou-me por um instante, que exagero, o termo cunhado por minha amada M. em outra circunstância, a mesmice discursiva) aqui presente que se destaca, e isso é importante conhecer. No mais, o tratamento visual do livro é discreto, assim como a editora, uma pequena casa do Rio. Já não é mais assunto uma narrativa do tipo on the road, à maneira de Kerouak, pé na estrada, um tema que pode ter fascinado, por sua originalidade, nos anos 1950. Demorei tantos anos e só o adquiri ontem, porque estava em promoção na livraria aqui ao lado. Quero ler logo, mas à despeito de sua força e atração, não teria muito apelo editorial nos dias de hoje.



17 setembro 2025

Das trevas, para um novo tempo


Arnaldo Antunes, show Novo Mundo


Como é triste ver tanto desconsolo junto. Mas chegará o dia, e não tenho a menor dúvida, de que toda essa balbúrdia política proclamada com tanta pompa e pouca substância pela direita no mundo será desmascarada, e seus cúmplices devorados pelo ocaso. Pelo menos por uma geração, ou duas, tal como ocorreu com o fascismo europeu dos anos 1930. Há, no final das contas, uma fragilidade humana que procura se travestir de heróis justiceiros e, com isso, pobremente convencer as pessoas de que agem de acordo com a justiça e a liberdade. E maltratam. E assassinam. Lançados uma vez mais ao proscênio das ações políticas, essas lideranças xenófobas reagem às demandas populares com sua habitual retórica verborrágica, que por um momento entusiasmam, para depois consubstanciarem o trágico. 

Como se o aprendizado histórico não tivesse mais efeito, e toda a tragédia precisasse ser revivida, com uma outra roupagem. Desta vez, nenhuma guerra mundial salvará a humanidade de tantas personagens lamentáveis; restará a ação da resistência de uma esquerda de distintas colorações que, em um trabalho difícil, persistente, assumirá para si e para o mundo a consolidação de bastiões democráticos, renitentes, consistentes, a rebater os malefícios socio-político-econômicos dessa safra de tiranos. Não faço a menor ideia de quanto isso dura, mas a farsa irá sucumbir diante das evidências. Estamos todos compelidos à luta de nosso fundamental de nosso tempo. 

E não há como medir esforços para romper a ignorância política, com o compromisso de restabelecer o convívio entre adversários (e não a produção de novos inimigos), a prática indispensável dos intensos, indispensáveis e verdadeiros embates políticos. 



02 setembro 2025

Sobre um prefácio



 

Um mundo de diferenças

 

Nunca silenciarás minhas melodias,

Porque sou o amante da terra,

O trovador do vento e da chuva.

Salem Jubran (1941-2011)

 

Quando F. me pediu para escrever o prefácio de seu romance, aceitei sem pensar duas vezes, ao acreditar que com a leitura, vivenciaria novas impressões dos espaços devastados da Gaza de nossos dias. Meses antes, já havia saído de uma incômoda experiência, definida pela infindável pesquisa a que me submeti sobre a cultura palestina, ao concluir depois de muitos anos minha peça Terra Devastada, cujos personagens transitam de uma realidade atormentada por bombas e proibições, à realidade etérea da vida após a morte. 

Perguntava-me, o que mais poderia apresentar o romance de F.? Pois foi essa a bela surpresa. Com a leitura, não contava deparar-me com a fantasia, com as paixões e angústias como reflexos de um mesmo espelho, a mover a história, a ilustrar as tensões subjetivas que escondem seus personagens tão humanos. Em meio a um espaço conflagrado, eis que emerge o valor dos sentimentos, fazendo o leitor a compartilhar sonhos e confissões. Os percalços estão nos momentos de lirismo de cada indivíduo tolhidos pelo genocídio em curso, com o jogo de vozes narrativas a expandir-se indefinido entre o tempo presente e o tempo passado, entre o tempo da realidade cotidiana e o tempo mítico, assim como o reflexo nos espelhos denota a dualidade entre o real e o imaginário.

A dor e o sofrimento pelo que acontece em Gaza, e mais especificamente, em Rafah, surge aqui e ali, no transbordamento das personagens, que se sucedem tal qual uma apresentação teatral, em que a luz da cenografia os trazem ao proscênio para mitigar suas aflições. E nada parece escapar ao escrutínio das emoções, e o mundo real a cercear o distanciamento que é lembrado na narrativa indireta, Raquel nutre em si raiva e indignação. Raiva e indignação pela dor das mulheres que veem os filhos explodindo pelos ares e pela dor dos filhos diante das mães desfazendo-se em sangue, ossos e lágrimas (...).

É no capítulo Montanha Mágica que sobrevém a fantasia, como uma necessidade para contribuir com os fatos históricos, a ideia de um casal fundador, que uma vez desaparecidos, retornariam com um exército de anjos para salvar Rafah dos fuzis e bombas. Não há qualquer incompatibilidade nessa mitologia, ainda mais se considerarmos o cul-de-sac em que os palestinos se encontram hoje, cercados e à beira de mais uma expulsão sionista. Como na poesia de Refaat Alareer, em que uma criança olha para os céus no aguardo de seu pai, desaparecido em um resplendor, e ao mirar um barrilzinho voando alto, imagina que ali existe um anjo trazendo de volta o amor e a esperança.

Há sempre a leveza na escrita de F., que enseja a leitura continuada. Os capítulos se sucedem em novas revelações, conectando-as com o já conhecido: a narrativa assim não nos deixa reféns do desconsolo; nas fronteiras de Rafah procura dar a tensão subjetiva da vida que nos é negada nos relatos jornalísticos. Assim, Emmanuel, Raquel, Ava, Cashemira, despontam com suas dúvidas, embrenhados em uma tormenta psicológica que estremece o ser, tal como as bombas de um inimigo invisível. Em um ambiente de turbulência sem fim, a destruição é simultânea e nada poupa, seja o mundo pessoal com seus afetos, seja o mundo coletivo com a força de uma cultura.